Essa é a 1ª parte de uma típica (até certo ponto) história de fantasia medieval. Ela se passa num continente fictício chamado Azällor, criado por mim e por um outro cara louco chamado Lucas Alberto Vasconcellos. Azällor tem praticamente tudo o que se espera de um mundo medieval fictício, mas aqui os elfos são crueis, os orcs são pouco numerosos e insignificantes, os anões vivem na sarjeta da sociedade humana e os deuses são frios e calculistas. Em breve (ou não) escreverei uma Introdução, apresentando de forma sucinta a história de Azällor e explicando o que são falcos, síneos e outros termos estranhos que aparecem no texto.
Como o título da postagem sugere, essa 1ª Parte ainda está inacabada, faltando dois capítulos (um deles já em andamento).
Capítulo I
Estava
frio demais. Fargost era um anão, raça dura e obstinada, mas aquela península
era impiedosamente gelada. Vinham viajando havia semanas desde as terras
quentes do sul. Não estavam tão longe de seu objetivo, mas a temperatura
parecia cair um pouco mais a cada passo que davam.
-
Não vejo o sol há dias – reclamou Salab, tremendo como uma vara verde. Tal como
os demais companheiros de viagem de Fargost, Salab era um sulista, de pele
morena e pouco gosto pelo frio.
-
É sempre inverno aqui? – perguntou Huslim, igualmente mal-humorado, observando
a campina salpicada de neve.
-
Este é o verão de Teudemmar – respondeu Fargost – O máximo de calor que esta
terra é capaz de proporcionar.
-
Calor? – escarneceu Salab.
-
Ouvi dizer que Teudemmar é amaldiçoada – interveio Sayid, um jovem arrogante
cujos comentários estúpidos sempre irritavam Fargost – Os homens do norte
conspiraram contra o deus-sol. Em troca, ele os deixou sem luz e sem calor. O
ar se torna mais frio a cada ano. Chegará um dia em que todos os rios e lagos
de Teudemmar terão congelado, todas as plantas e animais terão morrido e a raça
bárbara do norte enfim terá sido extinta.
-
Faz sentido – disse Huslim.
-
Foi a coisa mais idiota que eu já ouvi – disse Fargost – O deus-sol é tão
adorado aqui quanto em qualquer outro lugar. A “raça bárbara do norte” tem
muito mais luz e calor do que aqueles pobres Guardiões de Pruinor poderiam
sonhar em ter.
-
Quem me disse isso foi um síneo, senhor Fargost – defendeu-se Sayid – Um
alquimista de Kalkárdia.
-
Então os alquimistas de Kalkárdia são tão bons em seu ofício quanto você em um
duelo – devolveu o anão. O grupo inteiro gargalhou, com exceção do jovem Sayid.
Fargost se lembrou do dia em que o espancara com uma espada de madeira na arena
de duelos. Toda a corte do Império do Sul assistira àquilo, inclusive o próprio
imperador. – Foi uma luta memorável – completou o anão, levantando uma nova
leva de gargalhadas.
Sayid
corou de raiva. Fargost ficou satisfeito. Adorava irritá-lo. Pôde ver nos olhos
do rapaz que sua vontade era de puxar a espada e decapitá-lo ali mesmo, mas se
tentasse seria derrubado e espancado outra vez. Agora as espadas eram de
verdade, então era provável que o jovem saísse com uma orelha ou alguns dedos a
menos. Devia saber disso, pois em vez de atacar o anão limitou-se a segurar as
rédeas com força, certamente imaginando que eram o pescoço de Fargost.
Sem
mais gracejos ou insultos dos quais rir, o grupo prosseguiu em silêncio. Os
sorrisos voltaram a dar lugar às carrancas. Fargost suspirou. O humor de seus
companheiros havia piorado muito desde que o sol se escondera. Na península de
Teudemmar o sol se escondia com freqüência demais.
O
grupo era razoavelmente grande. Cinqüenta guerreiros acompanhavam o anão,
embora para ele fossem quarenta e nove guerreiros e um jovem idiota que pensava
saber usar uma espada. De qualquer forma, todos estavam bem armados. Vinham
montados em velozes cavalos de guerra, com exceção de Fargost, que montava seu
fiel burrico Tegg.
Sorrindo,
o anão levou a mão à cabeça de Tegg e o acariciou atrás das orelhas. O burrico
adorava aquilo. Fargost o criara desde filhote. Alimentara-o e o vira crescer,
como um pai a um filho. O anão tinha seus próprios filhos, mas o amor que
nutria pelo burrico era quase tão forte quanto o que tinha por eles.
Enquanto
ainda o coçava, notou algo estranho no modo como ele mexia as orelhas e
farejava o ar. “Está ouvindo algo”, soube o anão de imediato. Conhecia Tegg bem
o suficiente para saber quando estava nervoso.
Quando
ele próprio parou para escutar, não notou nada fora do comum a princípio.
Cascos pisoteando a neve, cotas de malha tilintando, armas e escudos balançando
nas selas. “Mas há algo mais”, percebeu o anão. Um som constante e longínquo
vinha do norte, direção na qual eles seguiam. Na verdade era um conjunto de
sons; ecos idênticos, milhares deles, os inconfundíveis tinidos de aço contra
aço.
-
Fargost! – chamou Salab – Ouve isso? Há luta ao norte!
-
Estou ouvindo – respondeu o anão. Passando os olhos ao redor, viu que os
cavalos estavam tão inquietos quanto os homens.
-
O que fica naquela direção? – quis saber Huslim.
-
Teurosburg – respondeu Fargost – A capital de Teuron.
-
Já entramos em Teuron? – Salab mostrou surpresa.
-
Há alguns dias – tornou Fargost. Não era de se espantar que Salab não tivesse
notado. Teuron era um reino pequeno e de povoamento esparso, de modo que muitos
viajantes entravam e saíam dele sem perceber.
-
Devemos passar o mais longe possível da batalha – disse Huslim.
Aquilo
era óbvio. Quem quer que estivesse lutando, não era problema deles. Sua missão
era no reino de Vilmord, bem mais para o norte. Mas se fosse Vilmord que
estivesse lutando...
-
Teuron é colônia de Vilmord? – perguntou Salab. Parecia estar pensando a mesma
coisa.
-
Não – respondeu Fargost – Ainda não.
“Ainda
não. Mas talvez estejam enfrentando as legiões vilmorianas neste exato
momento.”
-
Colônia ou não, devemos deixar Teuron imediatamente – Huslim mantinha-se
inflexível – A guerra não faz parte de nossa missão.
-
Que os nórdicos se matem uns aos outros! – acrescentou Sayid, iluminando a
todos com mais um de seus comentários.
-
O que fica a oeste? – perguntou Huslim.
-
Ulfur – disse Fargost – Depois as Corcundas e o Lago de Gelo.
-
Os ulfuri são amigáveis? – questionou Salab.
-
São ferrenhos inimigos de Vilmord – respondeu o anão – Como todos os outros
povos ao sul e a oeste, e alguns ao leste.
-
Ou seja, todos os outros povos de Teudemmar – concluiu Salab.
-
Exato. Até agora passamos por reinos pequenos e fracos, reinos de homens que
preferem correr e se esconder ao verem um grupo de estranhos em suas terras. A
partir de Teuron as coisas mudam. Ulfur a oeste e Kert a leste. Ambos reinos
poderosos que espumam de raiva contra Vilmord. Arrancarão nossas tripas se
descobrirem sobre nossa missão.
-
Que venham! – exclamou Sayid, com a mão pateticamente pousada sobre o cabo da
espada – Não temo os bárbaros do norte!
-
Tampouco eles o temem, bravo guerreiro do sul – debochou Fargost, fazendo o
rapaz corar outra vez.
-
Perigo a leste e a oeste – disse Huslim – E quanto ao norte?
-
Kongot – respondeu o anão – Reino antigo e outrora poderoso, mas atualmente
ocupado pelas tropas de Vilmord.
-
Uma colônia vilmoriana – Salab concluiu o óbvio – É por ali que devíamos
seguir. As legiões nos escoltariam às Montanhas Negras.
-
Escoltariam – concordou Fargost. Aquilo lhe trouxe uma torrente de lembranças
simultâneas. As altas montanhas de rocha escura que formavam o reino do
Vilmord, as belas prostitutas de Vilerát, os legionários com seus uniformes
azuis e brancos, o jovem príncipe vilmoriano a quem Fargost devia a vida...
“Rei”,
corrigiu o anão. “Ele agora é o rei. Êndor Gurorson Ultren, rei de Vilmord.”
-
Concordo que é mais sensato seguir por território teuroniano até a colônia de
Vilmord – disse Huslim, despertando Fargost de seu breve devaneio – Mas não
pela capital. Não importa se são vilmorianos atacando. Não viemos aqui para uma
guerra.
-
Ninguém falou em entrarmos na guerra,
Huslim – observou Fargost.
-
Não quero nem ao menos passar perto dela, Fargost.
-
Mas passará – o anão endureceu a voz – O imperador me nomeou comandante dessa
expedição, então trate de manter seu cavalo seguindo o rastro do meu Tegg.
Huslim
suspirou. Nunca fora e certamente nunca seria insubordinado. Além disso, a
amizade que tinha por Fargost era antiga e enraizada, daquelas que superam
qualquer ressentimento causado por algumas palavras duras. Sayid, no entanto,
olhava de um modo irritante, quase incrédulo, para Huslim, como que se
perguntando porque o forte guerreiro agüentava aquilo calado, ao invés de
arrancar a cabeça do anão.
Resistindo
à tentação de mandar Sayid para as fileiras de trás, o que contrariaria as
ordens do imperador de mantê-lo ao seu lado, Fargost se pôs a pensar sobre o
que os aguardava em Teurosburg.
-
Fargost – chamou Salab – Talvez Huslim tenha razão. Por que chegar perto de uma
batalha, se viemos em missão de paz?
-
Porque quanto mais perto estivermos de uma legião vilmoriana mais seguros
estaremos.
-
Certo, mas... E se não forem vilmorianos? E se os homens de Ulfur ou Kert
estiverem invadindo Teuron?
Fargost
não respondeu. Não queria responder. Não tinha que responder. Queria ir àquela
maldita cidade e ver aquela maldita batalha. Por isso esporeou Tegg e avançou a
trote rápido. Imediatamente, sem questionar, seus homens fizeram o mesmo com
seus cavalos.
Capítulo II
O
príncipe Erik estava quase entediado. Não que a guerra o entediasse, mas aquela
era a quinta vez que acompanhava a Legião numa batalha por conquista, e a luta
se desenrolava exatamente como nas quatro vezes anteriores. No início, o reino
invadido sempre fugia ao avanço de Vilmord. Então concentrava suas forças na
cidade mais forte e ali resistia ferozmente durante algum tempo, mas logo
começava a morrer. Os teuronianos haviam escolhido sua capital, Teurosburg, a
única cidade do reino, como ponto de resistência. Causaram pesadas perdas aos
vilmorianos no primeiro dia, mantiveram alguma força no segundo, começaram a
fraquejar no terceiro e agora, no quinto dia de cerco, estavam à beira da
derrota.
Ulfur
e Kert, velhos inimigos de Vilmord, teriam sem dúvida enviado auxílio a Teuron,
o que dificultaria as coisas. Mas os vilmorianos eram conquistadores cautelosos.
Quatro legiões haviam sido enviadas a Ulfur e três a Kert, com ordens de
“saqueá-los e distraí-los”, segundo as palavras do próprio Conselho. Por isso
Teuron agora enfrentava sozinho cinco legiões vilmorianas sedentas por glória.
Erik
olhou para o pai. O velho homem tinha estampada no rosto a nobreza que lhe
corria nas veias. Os cabelos lisos e grisalhos desciam até os ombros. Os olhos,
profundamente azuis, não se desviavam da batalha por um segundo sequer. Uma
barba negra salpicada de cinza, muito bem aparada, adornava seu rosto régio.
Êndor, rei de Vilmord, estava vestido para a guerra, com armadura de malha e
placa, embora usasse uma coroa no lugar de um elmo. Embainhada às suas costas
encontrava-se Dente de Dragão, a quase milenar espada da Casa Ultren, forjada
em líbrium e abençoada por deuses.
O
príncipe possuía os mesmos cabelos negros que o pai tivera na juventude, também
cortados na altura dos ombros, e a mesma barba escura. Os olhos, herdados da
mãe, eram azul-acinzentados como o mar do norte. Também usava armadura e na
cabeça não tinha elmo ou coroa. A espada que portava, presa ao cinto, era menor
que a do pai e forjada em aço comum.
Apesar
de vestidos para a batalha, pai e filho se encontravam longe da luta,
observando-a do topo de uma pequena colina. Ambos estavam montados em robustos
corcéis de batalha, também vestidos com placa e malha, além de tecidos brancos
a azuis, as cores de Vilmord. Acima de suas cabeças, estandartes tremulavam
exibindo as Estrelas Gêmeas do norte e o dragão branco da Casa Ultren. Um
regimento inteiro de knias, os guardas pessoais do rei, formava um espesso
círculo ao redor da colina.
-
Idiotas – disse Erik, olhando os teuronianos morrerem.
-
Julga-os idiotas por terem coragem? – indagou o rei.
-
Julgo-os idiotas porque morrem quando poderiam viver. Não sou covarde, pai.
Admiro a coragem tanto quanto você. Mas existe uma diferença, uma linha muito
tênue, entre a coragem e a tolice. O que aqueles homens estão fazendo é pura
tolice.
-
E o que você faria? Dobraria o joelho? Ficaria de quatro e deixaria os
invasores te foderem? – o rei gargalhou sonoramente, mas Erik não encontrou
graça na piada.
Êndor,
o Forte, era como o chamavam, mas havia momentos em que o rei merecia o epíteto
de “o Rude”.
-
Então isso é tudo a que nossas guerras se resumem? – perguntou Erik – Foder
nossos vizinhos?
-
Não só os vizinhos. Chevaliers e aramati, ilgos e ortões, homens-lobo e
homens-aranha. Vamos foder todos os reinos do norte, cada um deles, até que não
reste uma única bunda intacta em Teudemmar.
Dessa
vez o rei não riu, mas o divertimento estava tão visível em seu rosto quanto em
sua voz. Erik ouviu um risinho vir da direita. Ao olhar se deparou com Helgar,
seu primo e melhor amigo, assistindo à batalha com a expressão de quem assiste
a um espetáculo teatral de comédia.
-
O que é tão engraçado, primo? – quis saber Erik.
-
Nossos homens fodendo os teuronianos – respondeu Helgar.
O
rei gargalhou com aquilo.
-
Ele pegou o espírito! – disse com entusiasmo.
Mas
Erik não havia pegado. Não era nenhum pacifista, porém jamais vira a guerra
como uma piada. “É através da guerra que se formam os impérios”, dissera-lhe
uma vez seu avô materno, Ulrich, earl de Homeinberg. O avô morrera havia duas
décadas, mas suas palavras nunca abandonaram a mente de Erik.
-
Um ditado laemoriano diz que a guerra é um instrumento da paz – disse o
príncipe.
-
É claro que é – concordou o rei – Não existe paz maior que a morte.
-
Não é esse o sentido! – Erik estava quase com raiva – A guerra muitas vezes é
um caminho para a unificação, e a unificação traz a paz.
-
A unificação é uma jaula – retrucou o rei.
Erik
não entendeu.
-
Imagine que cada reino de Teudemmar é uma mulher – continuou seu pai – E que
nós, vilmorianos, somos um tarado com o pau duro. Saquear um reino, como os
kértios e os aramati fazem, seria o mesmo que estuprar uma mulher uma vez. Mas
nós somos um tarado ambicioso. E preguiçoso. Não queremos ter que correr atrás
de uma mulher de rasgar-lhe a roupa toda vez que quisermos fodê-la. Por isso
pegamos cada uma dessas mulheres e jogamos numa jaula, nua e amarrada, de
pernas abertas, para podermos fodê-la sempre que nos aprouver.
Helgar
soltou outro risinho.
-
O senhor seu pai possui um senso de humor muito peculiar – explicou quando Erik
o olhou – Uma mistura de sagacidade régia com brutalidade guerreira.
Aquilo
era mais que verdade. Êndor era um rei em todos os sentidos, mas também um guerreiro,
brutal e ríspido como qualquer outro. Erik temia que tivesse herdado apenas a
parte régia.
-
Dizem que no sul o imperador é amado por todos os súditos – falou o príncipe,
sem saber direito por que.
-
Quem lhe disse isso não deve ter conhecido muitos homens do sul – respondeu o
rei – Sua tia conheceu. E seu primo também.
O
primo a quem Êndor se referia não era Helgar, mas Ródrion, cujo cavalo estava
logo atrás do de Erik. Ródrion se remexeu nervosamente na sela ao ouvir o rei
falar sobre ele. Sempre parecia ficar tenso quando o rei lhe dirigia um olhar
ou uma palavra. “Tem bons motivos para isso”, pensou Erik.
-
Minha mãe viveu muito tempo em terras sulistas – disse Ródrion, claramente
desconfortável com o assunto – Mas eu vim para o norte aos seis anos, jovem
demais para me lembrar de muita coisa.
-
Então perguntaremos a sua mãe quando tivermos acabado aqui – respondeu o rei –
Erik precisa de umas boas aulas sobre o Império do Sul e sua realidade.
“E
o senhor precisa de umas boas aulas sobre impérios de um modo geral. O senhor e
todos os homens de Vilmord”.
Erik volta e
meia se pegava questionando o modo com as colônias eram governadas. Era um
constante saque, como seu pai dissera. Vilmord sugava dos povos conquistados a
maior quantia de sangue possível sem lhes tirar a vida. “Mulheres nuas na
jaula”, lembrou-se. Era uma metáfora totalmente válida. “Mas e se pudéssemos
conquistá-las em vez de estuprá-las? E se fôssemos capazes de libertá-las e
fazer com que nos amassem? Fazer com que abrissem as pernas de boa vontade e
sentissem prazer em nossa foda...”
- Também já
ouvi falar que o imperador sulista é muito amado por aqueles que conquistou –
disse Helgar, interrompendo as reflexões do príncipe.
- Ah, é? – o
rei não pareceu se importar. Tinha os olhos fixos na batalha outra vez.
- Porém –
continuou Helgar – o Império do Sul é um poder instável. Já enfrentou diversas
rebeliões e duas guerras civis, sendo que a cada uma delas a unidade imperial
ameaçou ruir por completo.
Aquilo chamou
atenção suficiente do rei para fazer com que desviasse o olhar da luta.
- As colônias
são governadas por senhores de sua própria gente – prosseguiu Helgar – São
regidas por suas próprias leis e dotadas de seus próprios exércitos. São
livres, em todos os sentidos da palavra. Isso faz com que muitos acabem por
amar seu soberano e conquistador. Mas há um preço.
- Insubordinação
– disse o rei – Falta de controle. A paz só é mantida enquanto as colônias querem que ela seja mantida. Por mais
que digam idolatrar o seu Imperador do Sul, atacam-no sem piedade ao primeiro
sinal de fraqueza.
Êndor lançou
um olhar duro ao filho, um olhar que ordenava que ele enfiasse aquela lição na
cabeça.
- Enquanto nós
governamos nossas colônias com pulso de ferro – disse o príncipe em
continuidade à fala do pai – Também enfrentamos rebeliões, mas nenhuma delas
ameaçou arruinar nosso império. Isso porque destruímos totalmente o poder dos
povos que conquistamos, deixando-os fracos demais para causar problemas
significativos.
- O que às
vezes é tedioso, mas mantém nosso poder inquebrável – disse o rei – Punho de
ferro, você diz. Punho de aço, digo eu. Ou melhor, punho de líbrium – Êndor
tocou o cabo de Dente de Dragão por cima do ombro.
Aquilo fez com
que Helgar abrisse um largo sorriso cheio de malícia. Os traços de seu rosto não
se assemelhavam nem um pouco aos de Erik. Os olhos eram azuis como os Êndor,
mas os cabelos, cortados curtos, eram ruivos. Ruiva também era sua barba. Erik
o chamava de primo, mas a verdade era que não havia consanguinidade entre os
dois. O pai de Helgar era Ralf, earl de Österberg e marido da irmã mais velha
do rei, porém Helgar era fruto de seu casamento anterior.
O rei gostava
muito dele, assim como Erik. Os dois primos haviam crescido juntos e tinham
praticamente a mesma idade, sendo Helgar alguns meses mais velho. Eram amigos
inseparáveis. Fora Helgar quem apresentara a Erik a primeira garota com quem
fornicara. Era Helgar quem ouvia suas confissões e quem ele buscava primeira
quando precisava de conselho. Às vezes parecia a Erik que a mente de seu primo
tinha o dobro da idade de seu corpo. Em certos assuntos não era nem de longe um
conselheiro tão bom quanto Rikbald, o Clérigo do Rei, mas quando se tratava de
política e astúcia não havia mente mais capaz que a de Helgar.
Ródrion era
diferente. Em quase todos os sentidos. Possuía sangue Ultren, o sangue do rei,
mas pelo lado materno. Sua mãe era Annabeth, irmã mais nova de Êndor, e o pai
era Wilfred da Casa Torbolk. Viviam no sul como representantes diplomáticos
quando ela foi informada das acusações de traição contra o marido. Annabeth
imediatamente fugiu de volta ao norte, trazendo consigo o pequeno Ródrion. O
marido veio em seu encalço e, sendo o idiota que era, acabou capturado pelas
tropas de Vilmord e enforcado por ordem de Êndor e do Conselho.
Tudo se
passara havia mais de dez anos. Ródrion fora criado na corte, com todo o
conforto a que um sobrinho do rei tinha direito, mas havia quem dissesse que a
semente de um traidor podia gerar apenas outro traidor. Erik se afeiçoara ao
primo mais novo quase tanto quanto a Helgar, a despeito de tais acusações. O
rei, no entanto, pouco fazia para mascarar seu desconforto em relação ao
garoto. Para seu azar, Ródrion assemelhava-se muito ao pai fisicamente. Tinha
os olhos verdes e o maxilar forte dos Torbolk, bem como os cabelos dourados.
Mantinha-os curtos na frente, nos lados e na parte de cima da cabeça, mas na
parte de trás uma longa trança lhe descia até a metade das costas. A barba,
igualmente loira, era rala e muito bem cortada, presente apenas no queixo. Erik
acreditava que o primo só não a arrancava porque em Teudemmar um homem era considerado
afeminado se não tivesse uma barba.
Ao contrário
de Helgar, Ródrion não tinha muito estômago para a política. Seu elemento era o
campo de batalha. Ainda não completara vinte anos, mas era quase tão robusto e
cheio de músculos quanto Êndor. Também lutava quase igualmente bem. O tempo
certamente o tornaria um guerreiro tão hábil e duro quanto o rei.
- Vitória! –
gritou de súbito um dos guardas reais. O grito foi seguido por um mar de urros
e lanças se erguendo em celebração.
Longe, na
capital sitiada de Teuron, uma catapulta acabara de despedaçar boa parte da já
enfraquecida muralha ocidental. Êndor aconselhara aos generais que
concentrassem ali toda a força de sua artilharia. Erik viu seu pai sorrir
satisfeito, orgulhoso de sua infalível perícia militar.
- Acabou –
disse Helgar, tão satisfeito quanto o rei.
- Acabou –
concordou Êndor, enquanto os legionários jorravam pela larga brecha na muralha
e inundavam a cidade teuroniana.
Capítulo III
O
estrondo foi como uma bofetada na alma de Dardan. Mesmo distraído como estava,
matando vilmorianos, soube do que se tratava assim que ouviu. “A muralha
ocidental”, pensou, enquanto enterrava um dos machados no ombro de um
legionário. O homem gritou e cambaleou, mas ainda teve força para afastar
Dardan com o escudo. Tentou uma estocada rápida, da qual Dardan se esquivou com
facilidade, para em seguida atingir o legionário na perna, nas costelas e no
pescoço, derramando-lhe a vida nas ameias já ensangüentadas de Teurosburg.
Dardan, rei de
Teuron, era uma criatura mortífera com seus dois machados. Nunca sentira prazer
em matar, mas definitivamente nascera para a luta. Além disso, estava ali para
defender a liberdade de seu povo, uma causa pela qual valia a pena matar.
Dardan se
assemelhava mais a um guerreiro oriental do que a um rei nórdico. Não tinha os
olhos puxados nem a pele amarelada dos homens do leste, mas vestia o kimono da
Ordem dos Quatro Elementos, da qual fazia parte. Tinha os cabelos longos e
negros, presos numa única e comprida trança, ao estilo oriental. A barba
trançada era um dos poucos indicadores de sua cultura nórdica. Não ostentava
coroa nem usava elmo. Em vez de placa ou cota de malha, trajava uma armadura de
couro por cima do kimono, leve o bastante para não lhe atrapalhar os
movimentos.
Havia ainda
cinco legionários vivos à sua volta. Matou o primeiro quando este tentou lhe
atingir pelas costas. Os outros avançaram, aproveitando-se do momento de
distração, mas Dardan era leve e rápido como o ar e seus machados mordiam com a
fúria do fogo. Dois legionários recuaram enquanto os outros dois agonizavam no
chão.
Os sons do
desabamento haviam cessado, sendo agora substituídos pelo rugido uníssono de
milhares de vozes que invadiam a cidade. “Estamos perdidos”, soube Dardan. Os
dois vilmorianos à sua frente trocaram um rápido olhar e depois se afastaram, a
passo lento e de costas, receosos de que o teuroniano os atacasse por trás
enquanto recuavam para junto de seus companheiros. “Estão certos em ter
receio”, pensou Dardan. Correu na direção dos dois legionários, saltou de lado
quando o primeiro tentou empalá-lo com a lança, fingiu um golpe alto que fez
com o homem erguesse o escudo, deixando as pernas vulneráveis ao golpe baixo
que veio a seguir. Enquanto caía de joelhos, com ambas as pernas sangrando, ele
tentou outra estocada com a lança, mas atingiu apenas o ar. Um chute com a
força da terra mandou para longe seu escudo e um machado caiu sobre sua mão
direita, fazendo-o largar a lança. Sem arma e sem escudo, aberto para a morte,
ele lançou a Dardan um olhar que suplicava misericórdia. “É tão jovem”,
percebeu o rei de Teuron. “Deve ser sua primeira batalha”.
Mas nisso o
outro legionário já estava caindo sobre Dardan numa fúria tola, lançando a
espada num golpe horizontal que visava cortar-lhe o pescoço. Desviar-se foi tão
fácil quanto atingir o soldado no elmo, atordoando-o, e depois na nuca,
matando-o. Tratou então do jovem ferido e desarmado, que não recebeu a
misericórdia pela qual seus olhos haviam suplicado.
Dardan deu um
rápido passar de olhos ao redor. A luta nas ameias não havia diminuído. Um
oceano de lâminas vilmorianas inundava a cidade abaixo, mas os legionários não
haviam afrouxado o ataque sobre as muralhas. Longas escadas e robustas torres
de cerco os conduziam para cima, para onde os teuronianos mantinham sua brava e
inútil resistência.
- Majestade! –
chamou uma voz familiar. Era Cérdric, o mais leal capitão de Dardan.
- Fale – disse
o rei.
- Temo que a
cidade esteja perdida. Tomarão as ruas em pouco tempo, então subirão para cá e
nos pegarão pelas costas.
Aquilo era
óbvio. Dardan mandara cavar fossos e erguer barricadas no interior da cidade,
mas isso agora se mostrava tão inútil quanto a própria resistência teuroniana.
Quase a totalidade dos homens se encontrava ali, nas ameias, e se Dardan
ordenasse que descessem às barricadas nas ruas o inimigo tomaria as muralhas e
também desceria, pegando-os por trás do mesmo jeito.
- Há alguma
notícia de Elred? – perguntou o rei. Havia enviado Elred, seu melhor guerreiro,
ao campo inimigo com toda a cavalaria de Teuron. Sua missão não era fácil:
destruir, ou ao menos enfraquecer, a vasta artilharia vilmoriana. Estava claro
que havia falhado.
- Nenhuma
notícia, meu senhor – respondeu Cérdric, dando uma nova bofetada na alma de
Dardan. “Não, ele não”, pensou. “É apenas o transmissor das más notícias. São
os deuses que me esbofeteiam. Os malditos deuses”.
À sua volta, o
rugido da batalha não cessava. O topo de uma escada surgiu, encostado ao muro,
poucos metros à esquerda de Dardan. Tão forte foi seu chute que o degrau mais
alto se partiu em dois, enquanto a escada tombava de volta para cima dos
vilmorianos.
- Faça soar a
retirada – ordenou o rei a Cérdric – Nossa resistência final será no castelo.
O capitão não
hesitou. Não tinha consigo o corno de guerra, mas correu para encontrar quem
que estivesse com ele. Dardan, enquanto isso, mergulhava entre um vasto grupo
de vilmorianos. Matou três antes que ao menos notassem sua presença. Atingiu a
perna de um quarto, o pescoço de um quinto, a virilha de um sexto, fez com que
um sétimo espetasse a lança na barriga de um oitavo. “Devia ter me rendido”,
pensou enquanto matava. “De que adiantará resistir no castelo? Mas talvez...
Talvez eles estejam vindo...”
Agora estava
totalmente cercado. Quando o círculo se fechou sobre ele, porém, uma onda de
teuronianos se chocou contra os legionários. Dardan dançou sua dança, girando e
cortando, a dança dos quatro elementos. Quando acabou, dezenas de novos corpos
vilmorianos jaziam ao seu redor. Os sobreviventes corriam, fugindo ao horror da
derrota, enquanto uma leva de teuronianos erguia as armas e gritava em
comemoração.
Por um
instante, um mísero instante, pareceu até que a batalha havia sido ganha; mas
então Dardan se lembrou de que havia luta ao longo de toda a extensão das
muralhas. Nos outros pontos o combate continuava feroz. “Acabamos de atrasar um
pouco mais a vitória de Vilmord”, pensou com amargura. Aquilo seria tudo o que
conseguiriam: adiar o inevitável. “A não ser que Leóffen esteja vindo.”
Mas, olhando
melhor os cadáveres à sua volta, o rei reparou que os mortos de Teuron eram tão
numerosos quanto os do inimigo. “Quanto mais teimo em resistir, mais sangue
cobre de meu povo. Vale mesmo a pena derramar tanto sangue por uma vitória tão
incerta?”
Foi nesse
instante que o corno de guerra soou. Cérdric havia cumprido sua tarefa. Os
guerreiros de Teuron, bem treinados, abandonaram imediatamente a luta e
correram na direção do castelo.
Antes de se
virar para acompanhá-los, Dardan caminhou até a beirada da muralha. Dali de
cima contemplou mais uma vez a vastidão do exército vilmoriano. Dezenas de
milhares de homens, uma floresta de lanças e espadas. Catapultas e torres de
cerco, escadas e aríetes. Olhou mais para o norte, para a pequena colina de
onde Êndor assistia à carnificina. “Vale mesmo a pena?”, a pergunta voltou a
assombrá-lo. Mas então já tinha a resposta.
Capítulo IV
Quando
Fargost avistou a colina rodeada de vilmorianos e encimada por um estandarte,
imaginou que encontraria ali os generais que comandavam o ataque.
-
É o rei! – foi Salab quem percebeu.
De
fato era. Alto e forte como na última vez em que o anão o vira, porém bem mais
velho. O cabelo havia se tornado grisalho e a pele enrugada, mas os músculos
pareciam tão em forma quanto antes.
Os
homens que guardavam a colina eram knias, guerreiros de elite treinados
especialmente para proteger a família real. Haviam notado a aproximação dos
estranhos, por isso os escudos estavam erguidos e as lanças inclinadas em
posição defensiva.
Êndor
também os havia notado. Fargost fez um sinal para que seus homens parassem e
prosseguiu sozinho.
-
Pare aí mesmo, anão! – gritou um arqueiro de cima da colina, já pronto para
enfiar uma flecha na cabeça de Fargost – Quem é e o que quer?
-
Houve uma época em que um anão e um príncipe eram amigos – ele respondeu
olhando direto nos olhos de Êndor – Ouvi dizer que esse príncipe agora é rei.
Terá perdido o amor pelos velhos amigos ao colocar a coroa na cabeça?
-
Fargost? – o rei parecia incrédulo – É você, seu pequeno desgraçado?
-
Em carne e osso. Embora não tanta carne quanto você, seu brutamontes filho da
mãe. A idade parece tê-lo deixado mais forte, em vez de abatê-lo!
Êndor
soltou uma rude e sonora gargalhada.
-
Deixem-no passar! – rosnou para os knias.
Os
guardas abriram caminho e o anão subiu a colina. Desceu do lombo de Tegg e fez
uma profunda reverência diante do rei.
-
Mas que porra é essa? – disse Êndor – Você por acaso é meu súdito? – ergueu o
anão como se fosse uma criança e lhe deu um abraço esmagadoramente apertado. O
rosto do rei estava vermelho do esforço quando devolveu Fargost ao chão. –
Pelos deuses! Ou você está gordo ou meus nervos estão enferrujados!
-
Ou as duas coisas – disse Fargost – Faz o que, trinta anos?
-
Vinte e nove.
-
Isso explica porque estamos velhos e gordos.
Os
dois riram. Foi então que o anão notou o jovem ao lado do rei. Era o próprio
Êndor rejuvenescido umas três décadas. O mesmo rosto, o mesmo cabelo, a mesma
barba. Era menos robusto, no entanto, e os olhos eram menos azuis.
-
Meu filho, Erik – apresentou Êndor.
-
É espantosamente idêntico ao pai. Lembro-me que você tinha apenas filhas na
última vez que o vi. Os deuses enfim decidiram ser generosos e lhe dar um
herdeiro?
-
Os deuses e meu pau – disse o rei.
-
É uma honra conhecê-lo, meu príncipe – Fargost fez uma nova reverência.
-
A honra é minha, senhor Fargost – respondeu Erik.
-
Em nome de Elbrus! – exclamou Êndor, pondo o anão em pé – Se você for se curvar
perante cada homem nobre que encontrar, é melhor não visitar minha corte. Na
idade em que está, sua coluna ficará tão fodida quanto as putas de Vilerát!
-
No sul é costume um homem de baixo nascimento se curvar perante um senhor.
-
Em Vilmord você só se curva perante seu
senhor.
-
Não estou em Vilmord, estou?
Êndor
riu outra vez.
-
Esse anão é um desgraçado – falou para Erik – Eu o adoro, mas é um desgraçado.
-
Você diz que não está em Vilmord, senhor Fargost – interveio o príncipe – Mas
está pisando numa futura colônia vilmoriana. Sabe que cidade é esta?
-
Sei.
Teurosburg
era uma cidade grande, mas parecia pequena frente ao exército vilmoriano. Já
não havia defensores nas ameias. Escadas, torres de cerco e uma enorme fenda na
muralha ocidental davam acesso aos legionários, que invadiam a cidade como um
enxame.
-
De fato, uma futura colônia vilmoriana – disse Fargost.
-
Eles ainda têm o castelo – falou Êndor.
-
Não por muito tempo – disse o príncipe.
-
Dardan é um homem teimoso – insistiu o rei – E o castelo de Teurosburg é tão
forte quanto a cidade.
-
Mas o exército que o protege está fraco – retrucou Erik.
Êndor
apenas sorriu. Ele sabia que o filho tinha razão. Aquela batalha estava
vencida.
-
Ouvi falar muito do rei Dardan – disse Fargost – O Dragão de Teuron, alguns o
chamam. Dizem que luta como um demônio.
-
Dizem muita coisa sobre ele – respondeu Êndor – Que é um síneo, que cospe fogo,
que não pode ser morto, que trepa com deuses, que fez um pacto com falcos... A
lista é imensa.
-
Também escutei sobre esse pacto com falcos. Será verdade?
Êndor
deu de ombros.
-
Se for, eu lhe garanto que os homens de Vilmord não têm medo de um bando de
orelhudos afeminados que moram em árvores.
Fargost
sorriu.
-
Ouvi falar que os falcos de Zádia são guerreiros formidáveis.
-
Você dá crédito demais ao que ouve falar – respondeu o rei.
-
Talvez. Mas os falcos derrotaram aqueles monstros mecânicos de Farl.
-
Isso nós também fizemos – retrucou o príncipe.
-
Suas montanhas fizeram, você quer dizer.
Aquilo
não agradou ao príncipe. Um rápido lampejo de ira passou por seu rosto.
-
Eu... – Fargost estava desconcertado – Eu não quis... O que eu quis dizer é que
o deus das montanhas foi fundamental para sua vitória.
Erik
sorriu.
-
Está tudo bem, senhor Fargost – disse, dando um tapinha amigável nas costas do
anão – Você não falou nada que não fosse verdade.
Realmente
não. Se não fosse pela proteção de Elbrus, deus das montanhas, o reino de
Vilmord teria sido trucidado pelas criaturas mecânicas de Farl. Aquela era uma
história antiga e, para alguns, de veracidade duvidosa; mas Fargost vira os
monstros de Farl com seus próprios olhos. “Nenhum homem pode esperar vencer
essas coisas”, pensara quando os vira. Sua opinião não havia mudado.
-
Há quem diga que a ajuda do deus-sol foi igualmente fundamental – quem falou foi
um jovem ruivo, de olhos azuis como os de Êndor, mas nada parecido com ele.
-
Conheça Helgar Ralfson, enteado de minha irmã – apresentou Êndor.
-
Também tem a cara do pai – disse Fargost, como se lembrasse do rosto de Ralf,
cunhado de Êndor. Na verdade o anão mal trocara duas palavras com o homem em
toda sua vida, mas sentia necessidade de ser cortês. Fora educado para isso;
educado para bajular nobres e reis.
Helgar
abriu a boca para responder, mas foi interrompido pela voz de um knia.
-
Sua Graça – chamou o guarda – O general Eiglaf pede para lhe falar.
O
rei assentiu. Os knias deram passagem e o general subiu a colina. Fez uma
reverência, mas não desceu do cavalo.
-
Majestade – sua voz era estranhamente fina, mais condizente com uma donzela do
que com um comandante de exércitos – Dardan recuou para o castelo.
-
É claro que recuou – disse o rei – Então o que vai ser? Mataremos os
teuronianos de fome ou atacaremos com tudo e deixaremos o castelo tão
ensanguentado quanto a cidade?
-
Atacaremos – respondeu o general em sua voz afeminada – Os homens anseiam pela
vitória.
-
Pela vitória e por cortar mais alguns teuronianos – tornou o rei – Há alguma
notícia de Kert ou de Ulfur?
-
Ainda não, Sua Graça. Deve estar tudo correndo como planejado.
-
Deve estar – concordou Êndor – Muito bem, general. É chegada a hora do último
golpe. Ataquem com força.
O
general assentiu.
-
Que Milito continue a nos favorecer – disse, depois se virou para descer a
colina.
Milito,
deus da guerra, era conhecido por sua inconstância, mas não parecia a Fargost
que os teuronianos tinham qualquer chance de vitória.
-
Chame seus homens – disse enfim Êndor – Vocês irão conosco à cidade.
Quando
Fargost voltou para junto dos seus e deu a notícia, Huslim pareceu desconfiado.
-
E o que faremos lá? – perguntou.
-
Assistiremos – respondeu o anão – Assistiremos à queda de Teuron.
Capítulo V
-
Vamos
nos render – anunciou Dardan. Esperava que isso causasse um pequeno rebuliço,
mas ninguém no salão ao menos abriu a boca. “Já esperavam por isso”, percebeu.
“Ansiavam por isso.”
Os
muros do castelo eram tão altos e espessos quanto os da cidade e requeriam
menos homens para defendê-los. Fyrwulf, um dos capitães de Dardan, havia
sugerido no primeiro dia de cerco que deixassem a cidade para os vilmorianos e
recuassem todos para o castelo.
-
Ele é grande o bastante para abrigar toda a população e todas as suas provisões
– argumentara o capitão – Com a vantagem de que é mais fácil de ser defendido.
Aquilo
era verdade, até certo ponto. O povo de Teuron teria passado por uma existência
miserável naqueles cinco dias, apinhado em salões e corredores, talvez em meio
a animais e montes de excremento. Se o cerco se prolongasse, doenças começariam
a surgir. Das ameias do castelo os guerreiros de Teuron veriam suas casas sendo
saqueadas e passadas na tocha. As pedras das muralhas seriam pouco a pouco
arrancadas e arremessadas contra os muros do castelo.
“E
agora tudo isso acontecerá, a não ser que nos rendamos.”
O
Grande Salão do castelo de Teurosburg estava lotado com guerreiros, clérigos,
nobres e todos os capitães. Entre eles não se encontrava Fyrwulf, que morrera
no terceiro dia de batalha, empalado por uma lança vilmoriana.
-
Meu senhor – disse Rameth, grão-clérigo de Teuron – Alguma palavra dos falcos?
“Leóffen.
Ele me prometeu...”
-
Os falcos não interferem em guerras humanas – respondeu o rei. Sabia que seria
aquilo que Leóffen teria escutado de seu tio, o ancião.
-
Mas deveriam! – rosnou o velho e carrancudo Lorde Ethelwulf – Eles têm uma
dívida para conosco!
-
Porque matamos dois anões? – ironizou Dardan.
-
Dois farlianos! Dois inimigos de
Zádia!
O
ódio entre os anões de Farl e os falcos de Zádia era quase tão antigo quanto a
fundação de Teuron. Dizia-se que os farlianos montavam imensas criaturas de
ferro que exalavam fumaça e cuspiam fogo. Haviam quase destruído Vilmord uma
vez, mas o deus das montanhas interferira, esmagando os anões e suas criaturas
sob uma cascata de rochas.
-
Perdemos uma dúzia dos nossos naquele ataque! – continuou Ethelwulf.
-
Nove – corrigiu Dardan – Perdemos nove. E os falcos nunca pediram que os
atacássemos.
-
Um favor também gera uma dívida – teimou o velho lorde.
-
Se gera uma dívida, não é um favor – respondeu o rei com paciência – E foi um
favor inútil, de qualquer forma.
Não
devia ter dito aquilo. Ethelwulf recebeu como uma ofensa. Seu primo, Lorde Alfric
de Rodsburg, emboscara os dois farlianos na fronteira de suas terras,
certamente visando um estreitamento de laços com os falcos ou alguma
gratificação por parte do rei. Não recebeu nem uma coisa nem outra. O próprio
Alfric foi um dos nove mortos no ataque, então coube ao seu filho, Aldrad,
receber o ouro dos falcos, que foi mais uma compensação pelas perdas do que uma
gratificação. O conflito maior ocorreu quando Aldrad se recusou a lhes entregar
as estranhas armas dos farlianos. A interferência de Dardan resolveu o
problema, mas não sem causar algum mal-estar.
Embora
cheio de ira, Ethelwulf se manteve calado durante o resto da audiência. O
grão-clérigo Rameth fez uma prece fervorosa ao deus-sol, exaltando-o e pedindo
sua proteção. O capitão Ricsig apresentou argumentos contra a rendição e planos
para a defesa do castelo, mas ninguém lhe deu muita atenção. Os lordes e ladies
de Teuron questionaram o rei sobre o destino de suas famílias.
-
Ninguém será morto – prometeu Dardan – Não enquanto se mantiverem submissos a
Vilmord.
-
Mas os desgraçados exigirão reféns – falou Lorde Arnold de Glesterburg.
-
Exigirão – Dardan não via motivos para mentir.
Depois
da audiência o rei fez uma visita demorada às ameias. Sentinelas estavam por
toda parte. Orgulhosos guerreiros de Teuron que agora teriam que dobrar o
joelho e viver sob as regras de um invasor. Altos impostos, servidão, proibição
de pegar em armas. Dardan conhecia o jeito vilmoriano de governar.
O
castelo de Teurosburg ficava bem no centro da cidade, no topo de uma imensa
colina. Se os generais de Vilmord optassem por assaltar os muros como haviam
feito com a cidade, perderiam centenas de seus legionários só na subida. “Mas
no fim tomariam o castelo e nos passariam na espada”, Dardan sabia. Todos
conheciam a história sobre a queda de Áskar, o reino que Vilmord levara quase
uma década para conquistar. A última batalha se dera na capital, onde os
askarianos lutaram com tal fervor que mais de vinte mil vilmorianos tombaram.
Mesmo assim a cidade foi tomada, e como retaliação os legionários mataram toda
a população.
“Tanto
sangue para nada”, pensou Dardan, observando os milhares de corpos que se
espalhavam pelas ameias de sua cidade. Legionários passavam por cima deles,
hordas e mais hordas, marchando na direção do castelo. Um círculo de lanças e
espadas começava a se formar ao redor da colina. “Vão atacar”, percebeu o rei.
“Eles têm pressa de nos matar.”
Não
havia tempo a perder. Dardan tinha que ir imediatamente aos vilmorianos,
carregando a bandeira de trégua, para anunciar sua rendição. Desceu ao Grande
Salão a fim de encontrar o capitão Cérdric, mas no caminho passou por seu
quarto, onde Ariel, sua esposa, chorava ao lado do leito do filho. O
grão-clérigo Rameth tentava acalmá-la.
-
É só uma febre, minha senhora. Ele já passou por várias. Vai ficar bem.
O
príncipe Rameth, homônimo do grão-clérigo e filho de Dardan, fora saudável
durante a infância, mas aos doze anos teve a primeira convulsão e depois disso
piorou a cada ano. Agora, aos dezesseis, febres e desmaios eram frequentes.
-
Ele está consciente? – perguntou Dardan.
-
Não – respondeu o grão-clérigo.
-
Meu filho está morrendo – o sofrimento na voz de Ariel era um golpe cruel no
coração de Dardan.
-
Confie em Hózus, milady – pediu o grão-clérigo – O deus-sol sabe o que faz.
Venha, me dê sua mão – ele olhou para o rei – Acompanha-nos numa oração, Majestade?
Dardan
assentiu. As orações de Rameth costumavam ser longas, mas daquela vez ele foi
breve e sucinto, pedindo ao deus-sol que desse forças ao jovem príncipe e a sua
mãe. Ariel pareceu se acalmar, mas Dardan tinha o coração pesado quando deixou
o quarto. No piso térreo do castelo, numa sala escondida de olhos curiosos,
encontrou seu altar particular. Ali se ajoelhou e orou a seus próprios deuses:
Vlamus, senhor do fogo; Naahi, deusa das águas; Raiza, mãe da terra; e Solphos,
senhor do céu e dos ventos.
Encontrou
o capitão Cérdric no Grande Salão como esperava. Era um homem resoluto e
obstinado como poucos, mas a perspectiva da derrota o deixara tão abatido
quanto os demais.
-
Capitão, traga-me a bandeira – ordenou o rei – E reúna uma escolta. Não mais
que uma vintena de homens.
-
Sim, Majestade – respondeu Cérdric, então saiu para cumprir seu dever. Porém,
no momento em que retornava com a bandeira de trégua e a escolta, um arqueiro
desceu correndo as escadas.
-
Majestade! – gritava ele, quase sem fôlego – Senhor! Eles vieram! Os falcos! Os
falcos vieram!
“Leoffen!”,
pensou Dardan. Sem hesitar, subiu correndo as escadas. Lordes, capitães e
guerreiros foram atrás. Quando chegaram às ameias, encontraram os vigias
olhando incrédulos para as muralhas da cidade, como se um milagre estivesse
ocorrendo lá.
E,
de fato, estava.
Capítulo VI
Estavam
dentro da cidade, se dirigindo ao castelo de Teurosburg, quando ouviram os gritos. Por um momento, Erik
pensou que fossem os capitães colocando seus legionários em ordem, mas logo ficou
claro que era um ataque. De onde estavam não podiam ver muita coisa, mas os
sons indicavam que homens estavam morrendo nas ameias.
Cavaleiros
passaram a galope por eles. Eram os generais. Dirigiram-se à muralha, mas no
meio do caminho pararam e deram meia-volta. Homens subiam correndo as escadas
que levavam às ameias. Erik viu um legionário despencar lá de cima, com uma
única flecha cravada no peito.
-
Falcos! – gritou um dos generais, passando outra vez a galope por eles – São os
malditos falcos!
Erik
sentiu um arrepio subir por sua espinha. Por maior que fosse o desdém que seu
pai tinha pelos falcos, ele sabia que tal sentimento era fruto da ignorância. O
rei tinha pouco conhecimento sobre aquelas criaturas, assim como a maior parte
dos homens. As histórias os descreviam ora como seres frágeis e afeminados, ora
como criaturas macabras dotadas de poderes terríveis. Mas Erik conhecera um
síneo, um homem que não tinha motivos para inventar histórias e que conhecera
bem os falcos; bem o bastante para temê-los.
-
Cada falco é um síneo – dissera o homem – Mas, diferente de nós, eles não têm
deuses para manipulá-los. Há uma divindade, uma certa Mãe, mas ela não os
controla como nossos deuses fazem.
Agora
os gritos eram mais frequentes. Ainda não dava para ver exatamente o que se
passava nas ameias, mas homens corriam e tombavam, gritavam e morriam. Houve um
estrondo, forte como aquele que anunciara a ruína da muralha ocidental de
Teurosburg, o que fez Erik imaginar que os falcos tinham uma poderosa
artilharia. Mas o que viu não poderia ter sido causado por nenhuma catapulta
que ele conhecesse. Grandes pedaços da muralha, blocos inteiros de pedra
maciça, voaram pelo ar a uma altura inacreditável, como que arremessados por
uma força monstruosa. Junto com os blocos voaram dezenas de legionários, para
em seguida despencar como pacotes de ferro sobre as ruas da cidade.
Um
dos blocos caiu a não mais que trinta passos do rei, por pouco não esmagando a
primeira fileira de guardas reais.
-
Para trás! – gritou Ulfric, comandante dos knias – Temos que nos afastar,
Majestade – acrescentou para o rei.
Êndor
apenas assentiu. Seu rosto não demonstrava qualquer emoção. Se estava temeroso
como o filho, sabia disfarçar bem.
Foram
mais para o interior da cidade, o que os deixava longe das muralhas, mas mais
perto da alta colina coroada pelo castelo. Dardan poderia liderar um ataque de
lá, visando matar ou capturar o rei inimigo, mas se fizesse isso levaria um bom
tempo para descer a colina. A comitiva do rei levaria menos tempo para voltar à
segurança junto das legiões. “Segurança contra espadas”, pensou Erik. “Não
contra blocos de pedra que caem do céu.”
O
rosto do rei continuava inexpressivo como uma rocha. Ródrion estava tenso.
Helgar tentava inutilmente disfarçar o nervosismo. O anão Fargost parecia
preocupado, enquanto seus cinquenta sulistas tinham o medo estampado nos
rostos.
A
visão das ameias era bem melhor ali. Flechas estavam caindo sobre os
legionários, mas parecia a Erik que elas brilhavam num estranho tom azul
enquanto cruzavam o ar. Pedras e legionários voaram outra vez. Um incêndio
surgiu de repente e começou a se espalhar depressa.
Todas
as tropas vilmorianas que ocupavam a cidade correram para as ameias ou para a
fenda na muralha ocidental, indo enfrentar os falcos na planície nevada. Não
havia mais blocos de pedra voando nem flechas caindo sobre os muros, mas o
incêndio avançava como se houvesse palha seca espalhada pelo chão.
-
Magia negra – murmurou o comandante Ulfric, tocando um amuleto em forma de sol
que usava no pescoço – Que os deuses nos salvem.
O
rei o olhou com desgosto. Êndor não tinha nada contra homens religiosos, Erik
sabia, mas desprezava o medo acima de tudo.
-
Os deuses pouco se importam conosco – disse o rei.
-
O deus-sol se importa – teimou Ulfric.
-
O deus-sol caga em cima dos homens e limpa o cu com suas barbas – respondeu
Êndor com selvageria. Ulfric se encolheu. Era um bom homem, leal até os ossos,
mas às vezes parecia mais um clérigo do que um soldado.
Não
demorou para que as ameias estivessem perdidas para os vilmorianos, totalmente
tomadas pelas chamas. Os legionários que não conseguiram chegar às escadas
pularam para a morte ou foram queimados. Pelo menos por um momento, Teurosburg
era quase uma cidade livre outra vez. As legiões de Vilmord estavam do lado de
fora, combatendo os falcos, de modo que os únicos vilmorianos ali dentro eram
os da comitiva do rei. Mesmo enfraquecido, o exército de Dardan era muito maior
que a comitiva, mas quando Erik olhou para trás, para o castelo sobre a colina,
não viu qualquer sinal de homens lançando um ataque.
-
Vamos – disse o rei de repente. Ulfric o olhou confuso. – Vamos para fora –
explicou Êndor – Quero ver a luta.
Ulfric
pareceu apavorado com a ideia de chegar perto dos falcos, o que enojou Êndor.
-
Vamos para fora! – ordenou o rei aos knias, como se Ulfric não estivesse ali
para fazer isso. Alguns dos guardas pareciam tão assustados quanto seu
comandante, mas ninguém hesitou em obedecer.
Erik
olhou para os sulistas de Fargost. Dois deles, um alto e esguio e o outro
robusto como Êndor, conversavam com o anão. Falavam em sua língua nativa,
provavelmente azkadiano, portanto Erik não entendia uma palavra. O medo, no
entanto, era tão visível em seus olhos quanto no tom de suas vozes.
Fargost
se aproximou do rei.
-
Gostaria de acompanhá-lo, meu amigo – disse o anão – Mas não posso arriscar as
vidas de meus homens.
Êndor
assentiu.
-
Vá para Haltsberg – respondeu – Irei encontrá-lo quando tiver acabado aqui.
-
Haltsberg – repetiu o anão, deixando claro que não sabia onde ficava o lugar.
-
É uma cidadezinha perto de Söderberg – explicou o rei, depois olhou para
Ródrion – Meu sobrinho é de lá. Ele será seu guia.
Ródrion
se remexeu na sela, assustado com a súbita missão.
-
Si... Sim, senhor – gaguejou o jovem primo de Erik.
Êndor
não gostava de Ródrion. Sempre deixara isso claro. Seu pai fora um traidor, um
diplomata que fora pego entregando segredos de Vilmord à nobreza sulista. Para
Erik isso não fazia de Ródrion um traidor também, mas essa não parecia ser a
opinião do rei. Ainda assim, dera uma tarefa ao sobrinho, provavelmente para
vê-lo pelas costas; mas talvez fosse um teste.
Já
estavam bem perto da brecha na muralha ocidental quando um dos knias deu o
grito de alarme.
-
Teuronianos! Às nossas costas!
O
medo voltou a assombrar o príncipe. Pensou que ao se virar veria uma horda de
teuronianos correndo pelas ruas, saindo de trás das casas abandonadas, mas não
havia ninguém. Ao longe, porém, um exército descia a alta colina. Dardan estava
lançando seu ataque. Jamais alcançaria a comitiva de Êndor a tempo, mas Erik
duvidava de que essa fosse sua intenção. “Ele vai reforçar o ataque dos falcos.
Vai atacar nossa retaguarda. Tolo. Abandonará a segurança de seu castelo para
ser trucidado em campo aberto.”
No
entanto, quando atravessaram as muralhas e pisaram na planície nevada, a espinha
de Erik gelou outra vez. Não havia possibilidade de vitória. Não para os
vilmorianos.