sexta-feira, 13 de junho de 2014

Espada de Deus - Capítulo I

Este é o primeiro capítulo de outra história, intitulada ESPADA DE DEUS. Diferente de VILMORD, essa história se passa no mundo real, não numa terra fictícia cheia de dragões e elfos. Ela é narrada em 1ª pessoa e descreve as aventuras de Hermann, um guerreiro germânico do século XI que, impelido pelos ventos do destino, acabará lutando na Primeira Cruzada. Sim, trata-se de um romance histórico (embora eu odeie o termo "romance", quando aplicado às minhas histórias). E sim, eu pesquisei sobre as Cruzadas, sobre o mundo no século XI, sobre os lugares em que se passa a história e sobre os personagens reais que aparecem nela. Não sou um Bernard Cornwell da vida, mas acho que fiz um trabalho razoável.

Ah, já ia me esquecendo: NÃO recomendo esta leitura, de forma alguma, a pessoas sensíveis. O número de palavrões e diálogos nojentos é ainda maior que em Vilmord.


Capítulo I


         Sou Hermann, filho de Friedrich, e já fui chamado de Godsword pelos soldados de Cristo. Godsword, “Espada de Deus”. Fiz jus a esse apelido. Matei turcos na Terra Santa; estripei homens em nome de Deus.
         Mas tudo começou muito antes, na Germânia de 1077, quando eu tinha nove anos e mal sabia segurar uma espada. Era noite de Natal. A neve caía na cidade de Regensburg, enquanto dois homens e um menino atravessavam as ruas com uma carroça lotada de merda. O menino era eu. Um dos homens era Friedrich, meu pai, e o outro era seu melhor amigo, um padre careca e depravado chamado Konrad.
         Não havia apenas bosta naquela carroça. Havia um cadáver. Seu nome era Gunther. Acabara de ser morto. Estava bem escondido no ester-co, mas era um bêbado desgraçado e exalava um odor de urina por onde quer que passasse. O padre Konrad estava preocupado.
         - Santo Deus, Friedrich! – disse ele – O filho da puta fede mais que a merda! Vão acabar nos pegando!
         Meu pai riu.
         - Relaxe, Konrad – falou – É Natal. Quem não está na igreja está enchendo a cara ou se abrigando do frio.
         O padre olhou em volta e viu que era verdade. As ruas estavam desertas; as casas, fechadas e silenciosas, com os telhados cobertos de neve. Passamos pela taverna Heiligeklinge, um local muito freqüentado por meu pai. Uma multidão de bêbados gargalhava perto da lareira, mas não pareceram nos notar.
         Era sempre assim em Regensburg. Chegava o Natal e todos os bons cristãos corriam para a igreja, enquanto o resto enchia as tavernas e os bordeis.
         - Não se preocupe, meu bom padre – continuou meu pai – Deus nos ama.
         Foi um deboche a Konrad, que segurava com força seu crucifixo de madeira e fazia uma prece silenciosa. Aquilo era algo raro de se ver. Konrad rezando. Só fazia isso quando estava muito empolgado ou se mijando de medo.
         O temor estampado no rosto do padre pareceu divertir meu pai. Ele estava de bom humor. Havia matado um homem e escondido seu cor-po na merda, mas estava de bom humor.
         Friedrich, o ferreiro. Não era um bom cristão, por isso muita gente o odiava em Regensburg. Mas eu o amava. Lembro-me dele como um homem alto e muito forte, que cheirava a ferro e tinha as mãos quase sempre encardidas. Seus cabelos eram compridos e loiros, como os meus, e sua barba era dourada como a minha viria a ser.
         - Você vai queimar no Inferno, Friedrich – disse Konrad, mas ha-via mais irritação que ameaça em sua voz.
         - Há um lugar para mim entre os santos – debochou meu pai.
         - Os santos vão mijar na sua alma e te entregar ao diabo – retrucou Konrad – E o diabo enfiará um espeto no seu cu e te assará como um por-co.
         - Amém – disse meu pai.
         Não demorou para que chegássemos à casa de Konrad. Era uma coisa pequena, de telhado baixo e paredes espremidas, mas surpreendentemente confortável por dentro. O fogo ainda ardia na lareira quando entramos. Os cães do padre, todos os cinco, pularam sobre nós e encheram-nos de lambidas, mas ficaram mais interessados pela carroça quando farejaram o fedor azedo que vinha lá de dentro. Nunca entendi porque cães gostam tanto do cheiro de podre.
         Enquanto Konrad corria para prender seus cachorros, meu pai e eu retirávamos Gunther do meio da bosta. Além dele, ali dentro estava Witwenmacher, “Fazedor de Viúvas”, o machado que o matara. A arma estava enrolada por um pano, e graças a isso não fora tocada pela merda. Feliz com isso, meu pai começou a assobiar uma antiga canção de guer-reiros que contava como Hermann, meu xará e líder de uma tribo chamada cherusker, trucidara um vasto exército romano na floresta de Teutoburg.
         O plano era simples: despedaçar o corpo e jogar os pedaços na lareira. Eu havia sugerido que déssemos Gunther de comida aos cães, mas Konrad disse que eles não comeriam.
         Meu pai ergueu o machado, pronto para dar o primeiro golpe, enquanto o padre trazia uma faca comprida para ajudá-lo. Ao contrário de meu pai, ele não estava bem-humorado.
         - Vá dormir um pouco, Hermann – disse para mim, obviamente não querendo que eu presenciasse aquilo.
         - Hermann é um guerreiro – interveio meu pai – Acha que um pouco de sangue o assusta?
         - Vá brincar com os cachorros – insistiu Konrad, ignorando meu pai.
         Eu não estava nem aí para o sangue ou as tripas de Gunther, mas estava ficando com sono, por isso fui até os fundos da casa, onde os cinco cachorros me receberam com latidos eufóricos. Dormi um pouco ali com eles. Acordei com a voz exaltada de Konrad. Parecia estar discutindo com meu pai.
         - Estou fazendo isso por Ângela, não por você! – gritava o padre quando eu entrei na sala – Pense nela, Friedrich! Pense em tudo o que está arriscando!
         Ângela era minha mãe.
         - Diga-me, Konrad, de quantas pessoas você acha que Siegmund suspeitará? – perguntou meu pai. Siegmund era o pai de Gunther.
         - Só de uma – respondeu o padre, olhando-o fixamente – E não será uma mera suspeita.
         - Exatamente. Serei acusado, julgado e condenado. Não há como fugir disso. Sumir com o corpo não ajudará em nada.
         O padre bufou. Estava extremamente irritado, mas sabia que meu pai tinha razão. Eu, no entanto, não sabia. Era jovem e tolo o bastante para acreditar que sumir com o cadáver e mentir seriam o suficiente para salvar meu pai.
         - Você não vai cortá-lo? – perguntei, incrédulo – Não vai queimá-lo?
         Meu pai balançou a cabeça.
         - Então o que, em nome de Deus, pretende fazer? – quis saber Konrad.
         - Vou levá-lo ao bispo. Vou confessar meu crime – ele sorriu – E me arrepender dele.
         Não sei o que irritou mais o padre, a fala de meu pai ou seu sorri-so.
         - Mas farei isso amanhã – continuou ele – Hoje eu comemoro! – puxou duas cadeiras e as colocou de frente para a lareira – Venha, Konrad! Sente-se! Hermann também! Ficaremos bêbados esta noite! Nada como um gordo barril de cerveja para celebrar uma vitória. Você tem cer-veja em casa, eu suponho.
Konrad apenas o olhou. Pela expressão de seu rosto, parecia querer esmurrá-lo.
         - Tudo bem – prosseguiu meu pai – A Heiligeklinge ainda deve estar aberta. Cheia de música, fumaça, risos, bebida e putas. Não posso mais pegar putas, você sabe, mas você pode. Ou terá de súbito se tornado um padre casto e devoto? Konrad, o Santo? – meu pai soltou uma longa e sonora gargalhada, mas o padre já não estava lhe dando atenção. Fitava as chamas com olhos pensativos, a testa enrugada de preocupação.
         - Às vezes eu penso que você é idiota, Friedrich – falou de repente – Matar Gunther! Gunther, o afilhado do bispo! Gunther, filho daquele maldito Siegmund!
         O padre esperou uma resposta, mas meu pai ficou simplesmente olhando, sem dizer nada e sem alterar a expressão de seu rosto, que era de pura tranqüilidade. Parecia não se importar com a possibilidade de balançar numa forca.
         - Você deve ter um cu no lugar do cérebro – cuspiu o padre.
         Meu pai gargalhou outra vez. Eu apenas sorri, mas não achava nada engraçado. Compartilhava os temores de Konrad.
         - Gunther agarrou minha mulher – explicou meu pai, recompondo-se da crise de riso.
         - E você o matou por isso? – esbravejou o padre – Não há um homem em Regensburg que não deseje foder sua mulher! – Konrad estava nervoso, mas se desconcertou quando viu a fúria no olhar de meu pai.
         Os dois eram amigos de longa data. Riam e bebiam juntos todos os dias, mas Konrad tinha uma língua afiada demais. Meu pai não era do tipo que controlava fácil sua raiva, por isso o padre era rápido em se retratar quando seus comentários infelizes irritavam Friedrich, o temido ferreiro de Regensburg.
         - O que quero dizer – falou Konrad, agora escolhendo bem as palavras – é que esse não foi o único motivo para você o ter matado. Você o odiava. Sempre odiou.
         - Muita gente o odeia – replicou meu pai – Inclusive você, Konrad.
         - Sim, ele era um assassino disfarçado de mercador, um filho de uma puta que merecia morrer com as tripas de fora.
         - E foi o que aconteceu. Eu dei a ele o que ele merecia, padre, por-tanto louve-me ao invés de me censurar.
         Konrad bufou. Depois se virou para me olhar e disse:
         - Seu pai é um cabeça-dura, Hermann. Forte, corajoso e leal, mas teimoso como uma praga. Pelo amor de Deus, não herde isso.
         - Ele herdará – disse meu pai, profético – E ele sabe que Gunther escreveu a própria sentença de morte.
         - Ele era o afilhado bispo! – bradou Konrad, irritando-se outra vez.
         - O bispo o detesta tanto quanto eu – retorquiu meu pai calmamen-te.
         - E caso você tenha se esquecido – continuou o padre, ignorando o comentário de meu pai – ele era filho de Siegmund, que por acaso é um grande amigo de Welf, senhor de toda a Bavária! Você está fodido, Friedrich! Fodido!
         Houve silêncio. O fogo rugia na lareira, projetando uma dança de luz e sombras sobre o rosto tenso de Konrad. Na outra extremidade da casa, os cães nos observavam presos em suas correntes, com as orelhas em pé.
         - O desgraçado agarrou minha mulher – falou meu pai, agora sério – Agarrou, recebeu um tapa e a ameaçou. Ele a ameaçou, Konrad! E que tipo de marido eu seria se não defendesse a honra de minha esposa?
         - Honra? – questionou o padre em tom de reprovação – Foi por honra que você o matou?
         - Eu dei a ele a chance de se redimir. Pedi que ele se desculpasse!
         - Pediu? – duvidou Konrad.
         - Ordenei – corrigiu meu pai – Mas o filho da puta se recusou. Havia insultado minha mulher, havia insultado a mim, e se recusou a pedir desculpas! Por isso eu bati nele.
         - Bateu? – Konrad outra vez mostrou dúvida – Com o machado, eu suponho.
         - Não mato um homem sem lhe dar a chance de lutar – meu pai pareceu ofendido – Dei-lhe um murro na cara e outro no estômago. Ele caiu sentado na lama. Devia ter acabado aí. Mas o infeliz tinha uma espada.
         - E foi idiota o bastante para usá-la – completou o padre.
         - Foi. Eu apenas me defendi. O que mais poderia fazer?
Konrad ponderou por alguns instantes, como se procurasse uma resposta, mas não havia nenhuma. Meu pai fizera o que qualquer homem com um machado teria feito.
         - Ele demorou para morrer? – perguntou o padre.
         - Não muito – respondeu meu pai – Graças a Hermann.
         - Hermann?
         Meu pai sorriu.
         - Eu teria deixado o desgraçado curtir cada minuto de sua agonia, mas Hermann me pediu o machado e acabou com seu sofrimento.
         Aquilo não era totalmente verdade. Eu não quisera acabar com o sofrimento de Gunther, mas sim lhe causar mais sofrimento ainda. Golpe-ei-o pelo menos uma dúzia de vezes, no peito, na cabeça e no pescoço. Eu era forte para minha idade e Witwenmacher era bem afiado, mas também era pesado, o que tornava meus golpes desajeitados. Acelerei a morte de Gunther e com certeza não lhe causei tanta dor quanto esperava.
         - Você o matou? – Konrad me perguntou, nitidamente surpreso. Ele fora soldado antes de ser padre, portanto tinha visto muita coisa sangrenta, mas um menino de nove anos matando um homem era novidade.
         - Matei sim – respondi com orgulho, um orgulho de guerreiro que já brotava em mim.
         - E você... gostou disso?
         - Gostei muito – falei. E tinha gostado mesmo.
         Meu pai riu e bagunçou meu cabelo, satisfeito por eu estar me tornando um Friedrichzinho. Konrad estava pasmo. Fez o sinal-da-cruz. Mas de repente desatou a rir também, como se o sinal-da-cruz o tivesse feito lembrar uma piada.
         - Vocês vão para o inferno – falou, ainda rindo – Os dois.
         - Então te encontraremos lá – disse meu pai.
         - Que assim seja – tornou Konrad.
         - Amém – disse eu.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Vilmord - Parte 1 (inacabada)

Essa é a 1ª parte de uma típica (até certo ponto) história de fantasia medieval. Ela se passa num continente fictício chamado Azällor, criado por mim e por um outro cara louco chamado Lucas Alberto Vasconcellos. Azällor tem praticamente tudo o que se espera de um mundo medieval fictício, mas aqui os elfos são crueis, os orcs são pouco numerosos e insignificantes, os anões vivem na sarjeta da sociedade humana e os deuses são frios e calculistas. Em breve (ou não) escreverei uma Introdução, apresentando de forma sucinta a história de Azällor e explicando o que são falcos, síneos e outros termos estranhos que aparecem no texto.

Como o título da postagem sugere, essa 1ª Parte ainda está inacabada, faltando dois capítulos (um deles já em andamento).



Capítulo I

            Estava frio demais. Fargost era um anão, raça dura e obstinada, mas aquela península era impiedosamente gelada. Vinham viajando havia semanas desde as terras quentes do sul. Não estavam tão longe de seu objetivo, mas a temperatura parecia cair um pouco mais a cada passo que davam.
            - Não vejo o sol há dias – reclamou Salab, tremendo como uma vara verde. Tal como os demais companheiros de viagem de Fargost, Salab era um sulista, de pele morena e pouco gosto pelo frio.
            - É sempre inverno aqui? – perguntou Huslim, igualmente mal-humorado, observando a campina salpicada de neve.
            - Este é o verão de Teudemmar – respondeu Fargost – O máximo de calor que esta terra é capaz de proporcionar.
            - Calor? – escarneceu Salab.
            - Ouvi dizer que Teudemmar é amaldiçoada – interveio Sayid, um jovem arrogante cujos comentários estúpidos sempre irritavam Fargost – Os homens do norte conspiraram contra o deus-sol. Em troca, ele os deixou sem luz e sem calor. O ar se torna mais frio a cada ano. Chegará um dia em que todos os rios e lagos de Teudemmar terão congelado, todas as plantas e animais terão morrido e a raça bárbara do norte enfim terá sido extinta.
            - Faz sentido – disse Huslim.
            - Foi a coisa mais idiota que eu já ouvi – disse Fargost – O deus-sol é tão adorado aqui quanto em qualquer outro lugar. A “raça bárbara do norte” tem muito mais luz e calor do que aqueles pobres Guardiões de Pruinor poderiam sonhar em ter.
            - Quem me disse isso foi um síneo, senhor Fargost – defendeu-se Sayid – Um alquimista de Kalkárdia.
            - Então os alquimistas de Kalkárdia são tão bons em seu ofício quanto você em um duelo – devolveu o anão. O grupo inteiro gargalhou, com exceção do jovem Sayid. Fargost se lembrou do dia em que o espancara com uma espada de madeira na arena de duelos. Toda a corte do Império do Sul assistira àquilo, inclusive o próprio imperador. – Foi uma luta memorável – completou o anão, levantando uma nova leva de gargalhadas.
            Sayid corou de raiva. Fargost ficou satisfeito. Adorava irritá-lo. Pôde ver nos olhos do rapaz que sua vontade era de puxar a espada e decapitá-lo ali mesmo, mas se tentasse seria derrubado e espancado outra vez. Agora as espadas eram de verdade, então era provável que o jovem saísse com uma orelha ou alguns dedos a menos. Devia saber disso, pois em vez de atacar o anão limitou-se a segurar as rédeas com força, certamente imaginando que eram o pescoço de Fargost.
            Sem mais gracejos ou insultos dos quais rir, o grupo prosseguiu em silêncio. Os sorrisos voltaram a dar lugar às carrancas. Fargost suspirou. O humor de seus companheiros havia piorado muito desde que o sol se escondera. Na península de Teudemmar o sol se escondia com freqüência demais.
            O grupo era razoavelmente grande. Cinqüenta guerreiros acompanhavam o anão, embora para ele fossem quarenta e nove guerreiros e um jovem idiota que pensava saber usar uma espada. De qualquer forma, todos estavam bem armados. Vinham montados em velozes cavalos de guerra, com exceção de Fargost, que montava seu fiel burrico Tegg.
            Sorrindo, o anão levou a mão à cabeça de Tegg e o acariciou atrás das orelhas. O burrico adorava aquilo. Fargost o criara desde filhote. Alimentara-o e o vira crescer, como um pai a um filho. O anão tinha seus próprios filhos, mas o amor que nutria pelo burrico era quase tão forte quanto o que tinha por eles.
            Enquanto ainda o coçava, notou algo estranho no modo como ele mexia as orelhas e farejava o ar. “Está ouvindo algo”, soube o anão de imediato. Conhecia Tegg bem o suficiente para saber quando estava nervoso.
            Quando ele próprio parou para escutar, não notou nada fora do comum a princípio. Cascos pisoteando a neve, cotas de malha tilintando, armas e escudos balançando nas selas. “Mas há algo mais”, percebeu o anão. Um som constante e longínquo vinha do norte, direção na qual eles seguiam. Na verdade era um conjunto de sons; ecos idênticos, milhares deles, os inconfundíveis tinidos de aço contra aço.
            - Fargost! – chamou Salab – Ouve isso? Há luta ao norte!
            - Estou ouvindo – respondeu o anão. Passando os olhos ao redor, viu que os cavalos estavam tão inquietos quanto os homens.
            - O que fica naquela direção? – quis saber Huslim.
            - Teurosburg – respondeu Fargost – A capital de Teuron.
            - Já entramos em Teuron? – Salab mostrou surpresa.
            - Há alguns dias – tornou Fargost. Não era de se espantar que Salab não tivesse notado. Teuron era um reino pequeno e de povoamento esparso, de modo que muitos viajantes entravam e saíam dele sem perceber.
            - Devemos passar o mais longe possível da batalha – disse Huslim.
            Aquilo era óbvio. Quem quer que estivesse lutando, não era problema deles. Sua missão era no reino de Vilmord, bem mais para o norte. Mas se fosse Vilmord que estivesse lutando...
            - Teuron é colônia de Vilmord? – perguntou Salab. Parecia estar pensando a mesma coisa.
            - Não – respondeu Fargost – Ainda não.
            “Ainda não. Mas talvez estejam enfrentando as legiões vilmorianas neste exato momento.”
            - Colônia ou não, devemos deixar Teuron imediatamente – Huslim mantinha-se inflexível – A guerra não faz parte de nossa missão.
            - Que os nórdicos se matem uns aos outros! – acrescentou Sayid, iluminando a todos com mais um de seus comentários.
            - O que fica a oeste? – perguntou Huslim.
            - Ulfur – disse Fargost – Depois as Corcundas e o Lago de Gelo.
            - Os ulfuri são amigáveis? – questionou Salab.
            - São ferrenhos inimigos de Vilmord – respondeu o anão – Como todos os outros povos ao sul e a oeste, e alguns ao leste.
            - Ou seja, todos os outros povos de Teudemmar – concluiu Salab.
            - Exato. Até agora passamos por reinos pequenos e fracos, reinos de homens que preferem correr e se esconder ao verem um grupo de estranhos em suas terras. A partir de Teuron as coisas mudam. Ulfur a oeste e Kert a leste. Ambos reinos poderosos que espumam de raiva contra Vilmord. Arrancarão nossas tripas se descobrirem sobre nossa missão.
            - Que venham! – exclamou Sayid, com a mão pateticamente pousada sobre o cabo da espada – Não temo os bárbaros do norte!
            - Tampouco eles o temem, bravo guerreiro do sul – debochou Fargost, fazendo o rapaz corar outra vez.
            - Perigo a leste e a oeste – disse Huslim – E quanto ao norte?
            - Kongot – respondeu o anão – Reino antigo e outrora poderoso, mas atualmente ocupado pelas tropas de Vilmord.
            - Uma colônia vilmoriana – Salab concluiu o óbvio – É por ali que devíamos seguir. As legiões nos escoltariam às Montanhas Negras.
            - Escoltariam – concordou Fargost. Aquilo lhe trouxe uma torrente de lembranças simultâneas. As altas montanhas de rocha escura que formavam o reino do Vilmord, as belas prostitutas de Vilerát, os legionários com seus uniformes azuis e brancos, o jovem príncipe vilmoriano a quem Fargost devia a vida...
            “Rei”, corrigiu o anão. “Ele agora é o rei. Êndor Gurorson Ultren, rei de Vilmord.”
            - Concordo que é mais sensato seguir por território teuroniano até a colônia de Vilmord – disse Huslim, despertando Fargost de seu breve devaneio – Mas não pela capital. Não importa se são vilmorianos atacando. Não viemos aqui para uma guerra.
            - Ninguém falou em entrarmos na guerra, Huslim – observou Fargost.
            - Não quero nem ao menos passar perto dela, Fargost.
            - Mas passará – o anão endureceu a voz – O imperador me nomeou comandante dessa expedição, então trate de manter seu cavalo seguindo o rastro do meu Tegg.
            Huslim suspirou. Nunca fora e certamente nunca seria insubordinado. Além disso, a amizade que tinha por Fargost era antiga e enraizada, daquelas que superam qualquer ressentimento causado por algumas palavras duras. Sayid, no entanto, olhava de um modo irritante, quase incrédulo, para Huslim, como que se perguntando porque o forte guerreiro agüentava aquilo calado, ao invés de arrancar a cabeça do anão.
            Resistindo à tentação de mandar Sayid para as fileiras de trás, o que contrariaria as ordens do imperador de mantê-lo ao seu lado, Fargost se pôs a pensar sobre o que os aguardava em Teurosburg.
            - Fargost – chamou Salab – Talvez Huslim tenha razão. Por que chegar perto de uma batalha, se viemos em missão de paz?
            - Porque quanto mais perto estivermos de uma legião vilmoriana mais seguros estaremos.
            - Certo, mas... E se não forem vilmorianos? E se os homens de Ulfur ou Kert estiverem invadindo Teuron?

            Fargost não respondeu. Não queria responder. Não tinha que responder. Queria ir àquela maldita cidade e ver aquela maldita batalha. Por isso esporeou Tegg e avançou a trote rápido. Imediatamente, sem questionar, seus homens fizeram o mesmo com seus cavalos.





Capítulo II

            O príncipe Erik estava quase entediado. Não que a guerra o entediasse, mas aquela era a quinta vez que acompanhava a Legião numa batalha por conquista, e a luta se desenrolava exatamente como nas quatro vezes anteriores. No início, o reino invadido sempre fugia ao avanço de Vilmord. Então concentrava suas forças na cidade mais forte e ali resistia ferozmente durante algum tempo, mas logo começava a morrer. Os teuronianos haviam escolhido sua capital, Teurosburg, a única cidade do reino, como ponto de resistência. Causaram pesadas perdas aos vilmorianos no primeiro dia, mantiveram alguma força no segundo, começaram a fraquejar no terceiro e agora, no quinto dia de cerco, estavam à beira da derrota.
            Ulfur e Kert, velhos inimigos de Vilmord, teriam sem dúvida enviado auxílio a Teuron, o que dificultaria as coisas. Mas os vilmorianos eram conquistadores cautelosos. Quatro legiões haviam sido enviadas a Ulfur e três a Kert, com ordens de “saqueá-los e distraí-los”, segundo as palavras do próprio Conselho. Por isso Teuron agora enfrentava sozinho cinco legiões vilmorianas sedentas por glória.
            Erik olhou para o pai. O velho homem tinha estampada no rosto a nobreza que lhe corria nas veias. Os cabelos lisos e grisalhos desciam até os ombros. Os olhos, profundamente azuis, não se desviavam da batalha por um segundo sequer. Uma barba negra salpicada de cinza, muito bem aparada, adornava seu rosto régio. Êndor, rei de Vilmord, estava vestido para a guerra, com armadura de malha e placa, embora usasse uma coroa no lugar de um elmo. Embainhada às suas costas encontrava-se Dente de Dragão, a quase milenar espada da Casa Ultren, forjada em líbrium e abençoada por deuses.
            O príncipe possuía os mesmos cabelos negros que o pai tivera na juventude, também cortados na altura dos ombros, e a mesma barba escura. Os olhos, herdados da mãe, eram azul-acinzentados como o mar do norte. Também usava armadura e na cabeça não tinha elmo ou coroa. A espada que portava, presa ao cinto, era menor que a do pai e forjada em aço comum.
            Apesar de vestidos para a batalha, pai e filho se encontravam longe da luta, observando-a do topo de uma pequena colina. Ambos estavam montados em robustos corcéis de batalha, também vestidos com placa e malha, além de tecidos brancos a azuis, as cores de Vilmord. Acima de suas cabeças, estandartes tremulavam exibindo as Estrelas Gêmeas do norte e o dragão branco da Casa Ultren. Um regimento inteiro de knias, os guardas pessoais do rei, formava um espesso círculo ao redor da colina.
            - Idiotas – disse Erik, olhando os teuronianos morrerem.
            - Julga-os idiotas por terem coragem? – indagou o rei.
            - Julgo-os idiotas porque morrem quando poderiam viver. Não sou covarde, pai. Admiro a coragem tanto quanto você. Mas existe uma diferença, uma linha muito tênue, entre a coragem e a tolice. O que aqueles homens estão fazendo é pura tolice.
            - E o que você faria? Dobraria o joelho? Ficaria de quatro e deixaria os invasores te foderem? – o rei gargalhou sonoramente, mas Erik não encontrou graça na piada.
            Êndor, o Forte, era como o chamavam, mas havia momentos em que o rei merecia o epíteto de “o Rude”.
            - Então isso é tudo a que nossas guerras se resumem? – perguntou Erik – Foder nossos vizinhos?
            - Não só os vizinhos. Chevaliers e aramati, ilgos e ortões, homens-lobo e homens-aranha. Vamos foder todos os reinos do norte, cada um deles, até que não reste uma única bunda intacta em Teudemmar.
            Dessa vez o rei não riu, mas o divertimento estava tão visível em seu rosto quanto em sua voz. Erik ouviu um risinho vir da direita. Ao olhar se deparou com Helgar, seu primo e melhor amigo, assistindo à batalha com a expressão de quem assiste a um espetáculo teatral de comédia.
            - O que é tão engraçado, primo? – quis saber Erik.
            - Nossos homens fodendo os teuronianos – respondeu Helgar.
            O rei gargalhou com aquilo.
            - Ele pegou o espírito! – disse com entusiasmo.
            Mas Erik não havia pegado. Não era nenhum pacifista, porém jamais vira a guerra como uma piada. “É através da guerra que se formam os impérios”, dissera-lhe uma vez seu avô materno, Ulrich, earl de Homeinberg. O avô morrera havia duas décadas, mas suas palavras nunca abandonaram a mente de Erik.
            - Um ditado laemoriano diz que a guerra é um instrumento da paz – disse o príncipe.
            - É claro que é – concordou o rei – Não existe paz maior que a morte.
            - Não é esse o sentido! – Erik estava quase com raiva – A guerra muitas vezes é um caminho para a unificação, e a unificação traz a paz.
            - A unificação é uma jaula – retrucou o rei.
            Erik não entendeu.
            - Imagine que cada reino de Teudemmar é uma mulher – continuou seu pai – E que nós, vilmorianos, somos um tarado com o pau duro. Saquear um reino, como os kértios e os aramati fazem, seria o mesmo que estuprar uma mulher uma vez. Mas nós somos um tarado ambicioso. E preguiçoso. Não queremos ter que correr atrás de uma mulher de rasgar-lhe a roupa toda vez que quisermos fodê-la. Por isso pegamos cada uma dessas mulheres e jogamos numa jaula, nua e amarrada, de pernas abertas, para podermos fodê-la sempre que nos aprouver.
            Helgar soltou outro risinho.
            - O senhor seu pai possui um senso de humor muito peculiar – explicou quando Erik o olhou – Uma mistura de sagacidade régia com brutalidade guerreira.
            Aquilo era mais que verdade. Êndor era um rei em todos os sentidos, mas também um guerreiro, brutal e ríspido como qualquer outro. Erik temia que tivesse herdado apenas a parte régia.
            - Dizem que no sul o imperador é amado por todos os súditos – falou o príncipe, sem saber direito por que.
            - Quem lhe disse isso não deve ter conhecido muitos homens do sul – respondeu o rei – Sua tia conheceu. E seu primo também.
            O primo a quem Êndor se referia não era Helgar, mas Ródrion, cujo cavalo estava logo atrás do de Erik. Ródrion se remexeu nervosamente na sela ao ouvir o rei falar sobre ele. Sempre parecia ficar tenso quando o rei lhe dirigia um olhar ou uma palavra. “Tem bons motivos para isso”, pensou Erik.
            - Minha mãe viveu muito tempo em terras sulistas – disse Ródrion, claramente desconfortável com o assunto – Mas eu vim para o norte aos seis anos, jovem demais para me lembrar de muita coisa.
            - Então perguntaremos a sua mãe quando tivermos acabado aqui – respondeu o rei – Erik precisa de umas boas aulas sobre o Império do Sul e sua realidade.
            “E o senhor precisa de umas boas aulas sobre impérios de um modo geral. O senhor e todos os homens de Vilmord”.
Erik volta e meia se pegava questionando o modo com as colônias eram governadas. Era um constante saque, como seu pai dissera. Vilmord sugava dos povos conquistados a maior quantia de sangue possível sem lhes tirar a vida. “Mulheres nuas na jaula”, lembrou-se. Era uma metáfora totalmente válida. “Mas e se pudéssemos conquistá-las em vez de estuprá-las? E se fôssemos capazes de libertá-las e fazer com que nos amassem? Fazer com que abrissem as pernas de boa vontade e sentissem prazer em nossa foda...”
- Também já ouvi falar que o imperador sulista é muito amado por aqueles que conquistou – disse Helgar, interrompendo as reflexões do príncipe.
- Ah, é? – o rei não pareceu se importar. Tinha os olhos fixos na batalha outra vez.
- Porém – continuou Helgar – o Império do Sul é um poder instável. Já enfrentou diversas rebeliões e duas guerras civis, sendo que a cada uma delas a unidade imperial ameaçou ruir por completo.
Aquilo chamou atenção suficiente do rei para fazer com que desviasse o olhar da luta.
- As colônias são governadas por senhores de sua própria gente – prosseguiu Helgar – São regidas por suas próprias leis e dotadas de seus próprios exércitos. São livres, em todos os sentidos da palavra. Isso faz com que muitos acabem por amar seu soberano e conquistador. Mas há um preço.
- Insubordinação – disse o rei – Falta de controle. A paz só é mantida enquanto as colônias querem que ela seja mantida. Por mais que digam idolatrar o seu Imperador do Sul, atacam-no sem piedade ao primeiro sinal de fraqueza.
Êndor lançou um olhar duro ao filho, um olhar que ordenava que ele enfiasse aquela lição na cabeça.
- Enquanto nós governamos nossas colônias com pulso de ferro – disse o príncipe em continuidade à fala do pai – Também enfrentamos rebeliões, mas nenhuma delas ameaçou arruinar nosso império. Isso porque destruímos totalmente o poder dos povos que conquistamos, deixando-os fracos demais para causar problemas significativos.
- O que às vezes é tedioso, mas mantém nosso poder inquebrável – disse o rei – Punho de ferro, você diz. Punho de aço, digo eu. Ou melhor, punho de líbrium – Êndor tocou o cabo de Dente de Dragão por cima do ombro.
Aquilo fez com que Helgar abrisse um largo sorriso cheio de malícia. Os traços de seu rosto não se assemelhavam nem um pouco aos de Erik. Os olhos eram azuis como os Êndor, mas os cabelos, cortados curtos, eram ruivos. Ruiva também era sua barba. Erik o chamava de primo, mas a verdade era que não havia consanguinidade entre os dois. O pai de Helgar era Ralf, earl de Österberg e marido da irmã mais velha do rei, porém Helgar era fruto de seu casamento anterior.
O rei gostava muito dele, assim como Erik. Os dois primos haviam crescido juntos e tinham praticamente a mesma idade, sendo Helgar alguns meses mais velho. Eram amigos inseparáveis. Fora Helgar quem apresentara a Erik a primeira garota com quem fornicara. Era Helgar quem ouvia suas confissões e quem ele buscava primeira quando precisava de conselho. Às vezes parecia a Erik que a mente de seu primo tinha o dobro da idade de seu corpo. Em certos assuntos não era nem de longe um conselheiro tão bom quanto Rikbald, o Clérigo do Rei, mas quando se tratava de política e astúcia não havia mente mais capaz que a de Helgar.
Ródrion era diferente. Em quase todos os sentidos. Possuía sangue Ultren, o sangue do rei, mas pelo lado materno. Sua mãe era Annabeth, irmã mais nova de Êndor, e o pai era Wilfred da Casa Torbolk. Viviam no sul como representantes diplomáticos quando ela foi informada das acusações de traição contra o marido. Annabeth imediatamente fugiu de volta ao norte, trazendo consigo o pequeno Ródrion. O marido veio em seu encalço e, sendo o idiota que era, acabou capturado pelas tropas de Vilmord e enforcado por ordem de Êndor e do Conselho.
Tudo se passara havia mais de dez anos. Ródrion fora criado na corte, com todo o conforto a que um sobrinho do rei tinha direito, mas havia quem dissesse que a semente de um traidor podia gerar apenas outro traidor. Erik se afeiçoara ao primo mais novo quase tanto quanto a Helgar, a despeito de tais acusações. O rei, no entanto, pouco fazia para mascarar seu desconforto em relação ao garoto. Para seu azar, Ródrion assemelhava-se muito ao pai fisicamente. Tinha os olhos verdes e o maxilar forte dos Torbolk, bem como os cabelos dourados. Mantinha-os curtos na frente, nos lados e na parte de cima da cabeça, mas na parte de trás uma longa trança lhe descia até a metade das costas. A barba, igualmente loira, era rala e muito bem cortada, presente apenas no queixo. Erik acreditava que o primo só não a arrancava porque em Teudemmar um homem era considerado afeminado se não tivesse uma barba.
Ao contrário de Helgar, Ródrion não tinha muito estômago para a política. Seu elemento era o campo de batalha. Ainda não completara vinte anos, mas era quase tão robusto e cheio de músculos quanto Êndor. Também lutava quase igualmente bem. O tempo certamente o tornaria um guerreiro tão hábil e duro quanto o rei.
- Vitória! – gritou de súbito um dos guardas reais. O grito foi seguido por um mar de urros e lanças se erguendo em celebração.
Longe, na capital sitiada de Teuron, uma catapulta acabara de despedaçar boa parte da já enfraquecida muralha ocidental. Êndor aconselhara aos generais que concentrassem ali toda a força de sua artilharia. Erik viu seu pai sorrir satisfeito, orgulhoso de sua infalível perícia militar.
- Acabou – disse Helgar, tão satisfeito quanto o rei.
- Acabou – concordou Êndor, enquanto os legionários jorravam pela larga brecha na muralha e inundavam a cidade teuroniana.





Capítulo III

O estrondo foi como uma bofetada na alma de Dardan. Mesmo distraído como estava, matando vilmorianos, soube do que se tratava assim que ouviu. “A muralha ocidental”, pensou, enquanto enterrava um dos machados no ombro de um legionário. O homem gritou e cambaleou, mas ainda teve força para afastar Dardan com o escudo. Tentou uma estocada rápida, da qual Dardan se esquivou com facilidade, para em seguida atingir o legionário na perna, nas costelas e no pescoço, derramando-lhe a vida nas ameias já ensangüentadas de Teurosburg.
Dardan, rei de Teuron, era uma criatura mortífera com seus dois machados. Nunca sentira prazer em matar, mas definitivamente nascera para a luta. Além disso, estava ali para defender a liberdade de seu povo, uma causa pela qual valia a pena matar.
Dardan se assemelhava mais a um guerreiro oriental do que a um rei nórdico. Não tinha os olhos puxados nem a pele amarelada dos homens do leste, mas vestia o kimono da Ordem dos Quatro Elementos, da qual fazia parte. Tinha os cabelos longos e negros, presos numa única e comprida trança, ao estilo oriental. A barba trançada era um dos poucos indicadores de sua cultura nórdica. Não ostentava coroa nem usava elmo. Em vez de placa ou cota de malha, trajava uma armadura de couro por cima do kimono, leve o bastante para não lhe atrapalhar os movimentos.
Havia ainda cinco legionários vivos à sua volta. Matou o primeiro quando este tentou lhe atingir pelas costas. Os outros avançaram, aproveitando-se do momento de distração, mas Dardan era leve e rápido como o ar e seus machados mordiam com a fúria do fogo. Dois legionários recuaram enquanto os outros dois agonizavam no chão.
Os sons do desabamento haviam cessado, sendo agora substituídos pelo rugido uníssono de milhares de vozes que invadiam a cidade. “Estamos perdidos”, soube Dardan. Os dois vilmorianos à sua frente trocaram um rápido olhar e depois se afastaram, a passo lento e de costas, receosos de que o teuroniano os atacasse por trás enquanto recuavam para junto de seus companheiros. “Estão certos em ter receio”, pensou Dardan. Correu na direção dos dois legionários, saltou de lado quando o primeiro tentou empalá-lo com a lança, fingiu um golpe alto que fez com o homem erguesse o escudo, deixando as pernas vulneráveis ao golpe baixo que veio a seguir. Enquanto caía de joelhos, com ambas as pernas sangrando, ele tentou outra estocada com a lança, mas atingiu apenas o ar. Um chute com a força da terra mandou para longe seu escudo e um machado caiu sobre sua mão direita, fazendo-o largar a lança. Sem arma e sem escudo, aberto para a morte, ele lançou a Dardan um olhar que suplicava misericórdia. “É tão jovem”, percebeu o rei de Teuron. “Deve ser sua primeira batalha”.
Mas nisso o outro legionário já estava caindo sobre Dardan numa fúria tola, lançando a espada num golpe horizontal que visava cortar-lhe o pescoço. Desviar-se foi tão fácil quanto atingir o soldado no elmo, atordoando-o, e depois na nuca, matando-o. Tratou então do jovem ferido e desarmado, que não recebeu a misericórdia pela qual seus olhos haviam suplicado.
Dardan deu um rápido passar de olhos ao redor. A luta nas ameias não havia diminuído. Um oceano de lâminas vilmorianas inundava a cidade abaixo, mas os legionários não haviam afrouxado o ataque sobre as muralhas. Longas escadas e robustas torres de cerco os conduziam para cima, para onde os teuronianos mantinham sua brava e inútil resistência.
- Majestade! – chamou uma voz familiar. Era Cérdric, o mais leal capitão de Dardan.
- Fale – disse o rei.
- Temo que a cidade esteja perdida. Tomarão as ruas em pouco tempo, então subirão para cá e nos pegarão pelas costas.
Aquilo era óbvio. Dardan mandara cavar fossos e erguer barricadas no interior da cidade, mas isso agora se mostrava tão inútil quanto a própria resistência teuroniana. Quase a totalidade dos homens se encontrava ali, nas ameias, e se Dardan ordenasse que descessem às barricadas nas ruas o inimigo tomaria as muralhas e também desceria, pegando-os por trás do mesmo jeito.
- Há alguma notícia de Elred? – perguntou o rei. Havia enviado Elred, seu melhor guerreiro, ao campo inimigo com toda a cavalaria de Teuron. Sua missão não era fácil: destruir, ou ao menos enfraquecer, a vasta artilharia vilmoriana. Estava claro que havia falhado.
- Nenhuma notícia, meu senhor – respondeu Cérdric, dando uma nova bofetada na alma de Dardan. “Não, ele não”, pensou. “É apenas o transmissor das más notícias. São os deuses que me esbofeteiam. Os malditos deuses”.
À sua volta, o rugido da batalha não cessava. O topo de uma escada surgiu, encostado ao muro, poucos metros à esquerda de Dardan. Tão forte foi seu chute que o degrau mais alto se partiu em dois, enquanto a escada tombava de volta para cima dos vilmorianos.
- Faça soar a retirada – ordenou o rei a Cérdric – Nossa resistência final será no castelo.
O capitão não hesitou. Não tinha consigo o corno de guerra, mas correu para encontrar quem que estivesse com ele. Dardan, enquanto isso, mergulhava entre um vasto grupo de vilmorianos. Matou três antes que ao menos notassem sua presença. Atingiu a perna de um quarto, o pescoço de um quinto, a virilha de um sexto, fez com que um sétimo espetasse a lança na barriga de um oitavo. “Devia ter me rendido”, pensou enquanto matava. “De que adiantará resistir no castelo? Mas talvez... Talvez eles estejam vindo...”
Agora estava totalmente cercado. Quando o círculo se fechou sobre ele, porém, uma onda de teuronianos se chocou contra os legionários. Dardan dançou sua dança, girando e cortando, a dança dos quatro elementos. Quando acabou, dezenas de novos corpos vilmorianos jaziam ao seu redor. Os sobreviventes corriam, fugindo ao horror da derrota, enquanto uma leva de teuronianos erguia as armas e gritava em comemoração.
Por um instante, um mísero instante, pareceu até que a batalha havia sido ganha; mas então Dardan se lembrou de que havia luta ao longo de toda a extensão das muralhas. Nos outros pontos o combate continuava feroz. “Acabamos de atrasar um pouco mais a vitória de Vilmord”, pensou com amargura. Aquilo seria tudo o que conseguiriam: adiar o inevitável. “A não ser que Leóffen esteja vindo.”
Mas, olhando melhor os cadáveres à sua volta, o rei reparou que os mortos de Teuron eram tão numerosos quanto os do inimigo. “Quanto mais teimo em resistir, mais sangue cobre de meu povo. Vale mesmo a pena derramar tanto sangue por uma vitória tão incerta?”
Foi nesse instante que o corno de guerra soou. Cérdric havia cumprido sua tarefa. Os guerreiros de Teuron, bem treinados, abandonaram imediatamente a luta e correram na direção do castelo.
Antes de se virar para acompanhá-los, Dardan caminhou até a beirada da muralha. Dali de cima contemplou mais uma vez a vastidão do exército vilmoriano. Dezenas de milhares de homens, uma floresta de lanças e espadas. Catapultas e torres de cerco, escadas e aríetes. Olhou mais para o norte, para a pequena colina de onde Êndor assistia à carnificina. “Vale mesmo a pena?”, a pergunta voltou a assombrá-lo. Mas então já tinha a resposta.



   

Capítulo IV

            Quando Fargost avistou a colina rodeada de vilmorianos e encimada por um estandarte, imaginou que encontraria ali os generais que comandavam o ataque.
            - É o rei! – foi Salab quem percebeu.
            De fato era. Alto e forte como na última vez em que o anão o vira, porém bem mais velho. O cabelo havia se tornado grisalho e a pele enrugada, mas os músculos pareciam tão em forma quanto antes.
            Os homens que guardavam a colina eram knias, guerreiros de elite treinados especialmente para proteger a família real. Haviam notado a aproximação dos estranhos, por isso os escudos estavam erguidos e as lanças inclinadas em posição defensiva.
            Êndor também os havia notado. Fargost fez um sinal para que seus homens parassem e prosseguiu sozinho.
            - Pare aí mesmo, anão! – gritou um arqueiro de cima da colina, já pronto para enfiar uma flecha na cabeça de Fargost – Quem é e o que quer?
            - Houve uma época em que um anão e um príncipe eram amigos – ele respondeu olhando direto nos olhos de Êndor – Ouvi dizer que esse príncipe agora é rei. Terá perdido o amor pelos velhos amigos ao colocar a coroa na cabeça?
            - Fargost? – o rei parecia incrédulo – É você, seu pequeno desgraçado?
            - Em carne e osso. Embora não tanta carne quanto você, seu brutamontes filho da mãe. A idade parece tê-lo deixado mais forte, em vez de abatê-lo!
            Êndor soltou uma rude e sonora gargalhada.
            - Deixem-no passar! – rosnou para os knias.
            Os guardas abriram caminho e o anão subiu a colina. Desceu do lombo de Tegg e fez uma profunda reverência diante do rei.
            - Mas que porra é essa? – disse Êndor – Você por acaso é meu súdito? – ergueu o anão como se fosse uma criança e lhe deu um abraço esmagadoramente apertado. O rosto do rei estava vermelho do esforço quando devolveu Fargost ao chão. – Pelos deuses! Ou você está gordo ou meus nervos estão enferrujados!
            - Ou as duas coisas – disse Fargost – Faz o que, trinta anos?
            - Vinte e nove.
            - Isso explica porque estamos velhos e gordos.
            Os dois riram. Foi então que o anão notou o jovem ao lado do rei. Era o próprio Êndor rejuvenescido umas três décadas. O mesmo rosto, o mesmo cabelo, a mesma barba. Era menos robusto, no entanto, e os olhos eram menos azuis.
            - Meu filho, Erik – apresentou Êndor.
            - É espantosamente idêntico ao pai. Lembro-me que você tinha apenas filhas na última vez que o vi. Os deuses enfim decidiram ser generosos e lhe dar um herdeiro?
            - Os deuses e meu pau – disse o rei.
            - É uma honra conhecê-lo, meu príncipe – Fargost fez uma nova reverência.
            - A honra é minha, senhor Fargost – respondeu Erik.
            - Em nome de Elbrus! – exclamou Êndor, pondo o anão em pé – Se você for se curvar perante cada homem nobre que encontrar, é melhor não visitar minha corte. Na idade em que está, sua coluna ficará tão fodida quanto as putas de Vilerát!
            - No sul é costume um homem de baixo nascimento se curvar perante um senhor.
            - Em Vilmord você só se curva perante seu senhor.
            - Não estou em Vilmord, estou?
            Êndor riu outra vez.
            - Esse anão é um desgraçado – falou para Erik – Eu o adoro, mas é um desgraçado.
            - Você diz que não está em Vilmord, senhor Fargost – interveio o príncipe – Mas está pisando numa futura colônia vilmoriana. Sabe que cidade é esta?
            - Sei.
            Teurosburg era uma cidade grande, mas parecia pequena frente ao exército vilmoriano. Já não havia defensores nas ameias. Escadas, torres de cerco e uma enorme fenda na muralha ocidental davam acesso aos legionários, que invadiam a cidade como um enxame.
            - De fato, uma futura colônia vilmoriana – disse Fargost.
            - Eles ainda têm o castelo – falou Êndor.
            - Não por muito tempo – disse o príncipe.
            - Dardan é um homem teimoso – insistiu o rei – E o castelo de Teurosburg é tão forte quanto a cidade.
            - Mas o exército que o protege está fraco – retrucou Erik.
            Êndor apenas sorriu. Ele sabia que o filho tinha razão. Aquela batalha estava vencida.
            - Ouvi falar muito do rei Dardan – disse Fargost – O Dragão de Teuron, alguns o chamam. Dizem que luta como um demônio.
            - Dizem muita coisa sobre ele – respondeu Êndor – Que é um síneo, que cospe fogo, que não pode ser morto, que trepa com deuses, que fez um pacto com falcos... A lista é imensa.
            - Também escutei sobre esse pacto com falcos. Será verdade?
            Êndor deu de ombros.
            - Se for, eu lhe garanto que os homens de Vilmord não têm medo de um bando de orelhudos afeminados que moram em árvores.
            Fargost sorriu.
            - Ouvi falar que os falcos de Zádia são guerreiros formidáveis.
            - Você dá crédito demais ao que ouve falar – respondeu o rei.
            - Talvez. Mas os falcos derrotaram aqueles monstros mecânicos de Farl.
            - Isso nós também fizemos – retrucou o príncipe.
            - Suas montanhas fizeram, você quer dizer.
            Aquilo não agradou ao príncipe. Um rápido lampejo de ira passou por seu rosto.
            - Eu... – Fargost estava desconcertado – Eu não quis... O que eu quis dizer é que o deus das montanhas foi fundamental para sua vitória.
            Erik sorriu.
            - Está tudo bem, senhor Fargost – disse, dando um tapinha amigável nas costas do anão – Você não falou nada que não fosse verdade.
            Realmente não. Se não fosse pela proteção de Elbrus, deus das montanhas, o reino de Vilmord teria sido trucidado pelas criaturas mecânicas de Farl. Aquela era uma história antiga e, para alguns, de veracidade duvidosa; mas Fargost vira os monstros de Farl com seus próprios olhos. “Nenhum homem pode esperar vencer essas coisas”, pensara quando os vira. Sua opinião não havia mudado.
            - Há quem diga que a ajuda do deus-sol foi igualmente fundamental – quem falou foi um jovem ruivo, de olhos azuis como os de Êndor, mas nada parecido com ele.
            - Conheça Helgar Ralfson, enteado de minha irmã – apresentou Êndor.
            - Também tem a cara do pai – disse Fargost, como se lembrasse do rosto de Ralf, cunhado de Êndor. Na verdade o anão mal trocara duas palavras com o homem em toda sua vida, mas sentia necessidade de ser cortês. Fora educado para isso; educado para bajular nobres e reis.
            Helgar abriu a boca para responder, mas foi interrompido pela voz de um knia.
            - Sua Graça – chamou o guarda – O general Eiglaf pede para lhe falar.
            O rei assentiu. Os knias deram passagem e o general subiu a colina. Fez uma reverência, mas não desceu do cavalo.
            - Majestade – sua voz era estranhamente fina, mais condizente com uma donzela do que com um comandante de exércitos – Dardan recuou para o castelo.
            - É claro que recuou – disse o rei – Então o que vai ser? Mataremos os teuronianos de fome ou atacaremos com tudo e deixaremos o castelo tão ensanguentado quanto a cidade?
            - Atacaremos – respondeu o general em sua voz afeminada – Os homens anseiam pela vitória.
            - Pela vitória e por cortar mais alguns teuronianos – tornou o rei – Há alguma notícia de Kert ou de Ulfur?
            - Ainda não, Sua Graça. Deve estar tudo correndo como planejado.
            - Deve estar – concordou Êndor – Muito bem, general. É chegada a hora do último golpe. Ataquem com força.
            O general assentiu.
            - Que Milito continue a nos favorecer – disse, depois se virou para descer a colina.
            Milito, deus da guerra, era conhecido por sua inconstância, mas não parecia a Fargost que os teuronianos tinham qualquer chance de vitória.
            - Chame seus homens – disse enfim Êndor – Vocês irão conosco à cidade.
            Quando Fargost voltou para junto dos seus e deu a notícia, Huslim pareceu desconfiado.
            - E o que faremos lá? – perguntou.
            - Assistiremos – respondeu o anão – Assistiremos à queda de Teuron.
  



Capítulo V

            - Vamos nos render – anunciou Dardan. Esperava que isso causasse um pequeno rebuliço, mas ninguém no salão ao menos abriu a boca. “Já esperavam por isso”, percebeu. “Ansiavam por isso.”
            Os muros do castelo eram tão altos e espessos quanto os da cidade e requeriam menos homens para defendê-los. Fyrwulf, um dos capitães de Dardan, havia sugerido no primeiro dia de cerco que deixassem a cidade para os vilmorianos e recuassem todos para o castelo.
            - Ele é grande o bastante para abrigar toda a população e todas as suas provisões – argumentara o capitão – Com a vantagem de que é mais fácil de ser defendido.
            Aquilo era verdade, até certo ponto. O povo de Teuron teria passado por uma existência miserável naqueles cinco dias, apinhado em salões e corredores, talvez em meio a animais e montes de excremento. Se o cerco se prolongasse, doenças começariam a surgir. Das ameias do castelo os guerreiros de Teuron veriam suas casas sendo saqueadas e passadas na tocha. As pedras das muralhas seriam pouco a pouco arrancadas e arremessadas contra os muros do castelo.
            “E agora tudo isso acontecerá, a não ser que nos rendamos.”
            O Grande Salão do castelo de Teurosburg estava lotado com guerreiros, clérigos, nobres e todos os capitães. Entre eles não se encontrava Fyrwulf, que morrera no terceiro dia de batalha, empalado por uma lança vilmoriana.
            - Meu senhor – disse Rameth, grão-clérigo de Teuron – Alguma palavra dos falcos?
            “Leóffen. Ele me prometeu...”
            - Os falcos não interferem em guerras humanas – respondeu o rei. Sabia que seria aquilo que Leóffen teria escutado de seu tio, o ancião.
            - Mas deveriam! – rosnou o velho e carrancudo Lorde Ethelwulf – Eles têm uma dívida para conosco!
            - Porque matamos dois anões? – ironizou Dardan.
            - Dois farlianos! Dois inimigos de Zádia!
            O ódio entre os anões de Farl e os falcos de Zádia era quase tão antigo quanto a fundação de Teuron. Dizia-se que os farlianos montavam imensas criaturas de ferro que exalavam fumaça e cuspiam fogo. Haviam quase destruído Vilmord uma vez, mas o deus das montanhas interferira, esmagando os anões e suas criaturas sob uma cascata de rochas.
            - Perdemos uma dúzia dos nossos naquele ataque! – continuou Ethelwulf.
            - Nove – corrigiu Dardan – Perdemos nove. E os falcos nunca pediram que os atacássemos.
            - Um favor também gera uma dívida – teimou o velho lorde.
            - Se gera uma dívida, não é um favor – respondeu o rei com paciência – E foi um favor inútil, de qualquer forma.
            Não devia ter dito aquilo. Ethelwulf recebeu como uma ofensa. Seu primo, Lorde Alfric de Rodsburg, emboscara os dois farlianos na fronteira de suas terras, certamente visando um estreitamento de laços com os falcos ou alguma gratificação por parte do rei. Não recebeu nem uma coisa nem outra. O próprio Alfric foi um dos nove mortos no ataque, então coube ao seu filho, Aldrad, receber o ouro dos falcos, que foi mais uma compensação pelas perdas do que uma gratificação. O conflito maior ocorreu quando Aldrad se recusou a lhes entregar as estranhas armas dos farlianos. A interferência de Dardan resolveu o problema, mas não sem causar algum mal-estar.
            Embora cheio de ira, Ethelwulf se manteve calado durante o resto da audiência. O grão-clérigo Rameth fez uma prece fervorosa ao deus-sol, exaltando-o e pedindo sua proteção. O capitão Ricsig apresentou argumentos contra a rendição e planos para a defesa do castelo, mas ninguém lhe deu muita atenção. Os lordes e ladies de Teuron questionaram o rei sobre o destino de suas famílias.
            - Ninguém será morto – prometeu Dardan – Não enquanto se mantiverem submissos a Vilmord.
            - Mas os desgraçados exigirão reféns – falou Lorde Arnold de Glesterburg.
            - Exigirão – Dardan não via motivos para mentir.
            Depois da audiência o rei fez uma visita demorada às ameias. Sentinelas estavam por toda parte. Orgulhosos guerreiros de Teuron que agora teriam que dobrar o joelho e viver sob as regras de um invasor. Altos impostos, servidão, proibição de pegar em armas. Dardan conhecia o jeito vilmoriano de governar.
            O castelo de Teurosburg ficava bem no centro da cidade, no topo de uma imensa colina. Se os generais de Vilmord optassem por assaltar os muros como haviam feito com a cidade, perderiam centenas de seus legionários só na subida. “Mas no fim tomariam o castelo e nos passariam na espada”, Dardan sabia. Todos conheciam a história sobre a queda de Áskar, o reino que Vilmord levara quase uma década para conquistar. A última batalha se dera na capital, onde os askarianos lutaram com tal fervor que mais de vinte mil vilmorianos tombaram. Mesmo assim a cidade foi tomada, e como retaliação os legionários mataram toda a população.
            “Tanto sangue para nada”, pensou Dardan, observando os milhares de corpos que se espalhavam pelas ameias de sua cidade. Legionários passavam por cima deles, hordas e mais hordas, marchando na direção do castelo. Um círculo de lanças e espadas começava a se formar ao redor da colina. “Vão atacar”, percebeu o rei. “Eles têm pressa de nos matar.”
            Não havia tempo a perder. Dardan tinha que ir imediatamente aos vilmorianos, carregando a bandeira de trégua, para anunciar sua rendição. Desceu ao Grande Salão a fim de encontrar o capitão Cérdric, mas no caminho passou por seu quarto, onde Ariel, sua esposa, chorava ao lado do leito do filho. O grão-clérigo Rameth tentava acalmá-la.
            - É só uma febre, minha senhora. Ele já passou por várias. Vai ficar bem.
            O príncipe Rameth, homônimo do grão-clérigo e filho de Dardan, fora saudável durante a infância, mas aos doze anos teve a primeira convulsão e depois disso piorou a cada ano. Agora, aos dezesseis, febres e desmaios eram frequentes.
            - Ele está consciente? – perguntou Dardan.
            - Não – respondeu o grão-clérigo.
            - Meu filho está morrendo – o sofrimento na voz de Ariel era um golpe cruel no coração de Dardan.
            - Confie em Hózus, milady – pediu o grão-clérigo – O deus-sol sabe o que faz. Venha, me dê sua mão – ele olhou para o rei – Acompanha-nos numa oração, Majestade?
            Dardan assentiu. As orações de Rameth costumavam ser longas, mas daquela vez ele foi breve e sucinto, pedindo ao deus-sol que desse forças ao jovem príncipe e a sua mãe. Ariel pareceu se acalmar, mas Dardan tinha o coração pesado quando deixou o quarto. No piso térreo do castelo, numa sala escondida de olhos curiosos, encontrou seu altar particular. Ali se ajoelhou e orou a seus próprios deuses: Vlamus, senhor do fogo; Naahi, deusa das águas; Raiza, mãe da terra; e Solphos, senhor do céu e dos ventos.
            Encontrou o capitão Cérdric no Grande Salão como esperava. Era um homem resoluto e obstinado como poucos, mas a perspectiva da derrota o deixara tão abatido quanto os demais.
            - Capitão, traga-me a bandeira – ordenou o rei – E reúna uma escolta. Não mais que uma vintena de homens.
            - Sim, Majestade – respondeu Cérdric, então saiu para cumprir seu dever. Porém, no momento em que retornava com a bandeira de trégua e a escolta, um arqueiro desceu correndo as escadas.
            - Majestade! – gritava ele, quase sem fôlego – Senhor! Eles vieram! Os falcos! Os falcos vieram!
            “Leoffen!”, pensou Dardan. Sem hesitar, subiu correndo as escadas. Lordes, capitães e guerreiros foram atrás. Quando chegaram às ameias, encontraram os vigias olhando incrédulos para as muralhas da cidade, como se um milagre estivesse ocorrendo lá.
            E, de fato, estava.








Capítulo VI

            Estavam dentro da cidade, se dirigindo ao castelo de Teurosburg,  quando ouviram os gritos. Por um momento, Erik pensou que fossem os capitães colocando seus legionários em ordem, mas logo ficou claro que era um ataque. De onde estavam não podiam ver muita coisa, mas os sons indicavam que homens estavam morrendo nas ameias.
            Cavaleiros passaram a galope por eles. Eram os generais. Dirigiram-se à muralha, mas no meio do caminho pararam e deram meia-volta. Homens subiam correndo as escadas que levavam às ameias. Erik viu um legionário despencar lá de cima, com uma única flecha cravada no peito.
            - Falcos! – gritou um dos generais, passando outra vez a galope por eles – São os malditos falcos!
            Erik sentiu um arrepio subir por sua espinha. Por maior que fosse o desdém que seu pai tinha pelos falcos, ele sabia que tal sentimento era fruto da ignorância. O rei tinha pouco conhecimento sobre aquelas criaturas, assim como a maior parte dos homens. As histórias os descreviam ora como seres frágeis e afeminados, ora como criaturas macabras dotadas de poderes terríveis. Mas Erik conhecera um síneo, um homem que não tinha motivos para inventar histórias e que conhecera bem os falcos; bem o bastante para temê-los.
            - Cada falco é um síneo – dissera o homem – Mas, diferente de nós, eles não têm deuses para manipulá-los. Há uma divindade, uma certa Mãe, mas ela não os controla como nossos deuses fazem.
            Agora os gritos eram mais frequentes. Ainda não dava para ver exatamente o que se passava nas ameias, mas homens corriam e tombavam, gritavam e morriam. Houve um estrondo, forte como aquele que anunciara a ruína da muralha ocidental de Teurosburg, o que fez Erik imaginar que os falcos tinham uma poderosa artilharia. Mas o que viu não poderia ter sido causado por nenhuma catapulta que ele conhecesse. Grandes pedaços da muralha, blocos inteiros de pedra maciça, voaram pelo ar a uma altura inacreditável, como que arremessados por uma força monstruosa. Junto com os blocos voaram dezenas de legionários, para em seguida despencar como pacotes de ferro sobre as ruas da cidade.
            Um dos blocos caiu a não mais que trinta passos do rei, por pouco não esmagando a primeira fileira de guardas reais.
            - Para trás! – gritou Ulfric, comandante dos knias – Temos que nos afastar, Majestade – acrescentou para o rei.
            Êndor apenas assentiu. Seu rosto não demonstrava qualquer emoção. Se estava temeroso como o filho, sabia disfarçar bem.
            Foram mais para o interior da cidade, o que os deixava longe das muralhas, mas mais perto da alta colina coroada pelo castelo. Dardan poderia liderar um ataque de lá, visando matar ou capturar o rei inimigo, mas se fizesse isso levaria um bom tempo para descer a colina. A comitiva do rei levaria menos tempo para voltar à segurança junto das legiões. “Segurança contra espadas”, pensou Erik. “Não contra blocos de pedra que caem do céu.”
            O rosto do rei continuava inexpressivo como uma rocha. Ródrion estava tenso. Helgar tentava inutilmente disfarçar o nervosismo. O anão Fargost parecia preocupado, enquanto seus cinquenta sulistas tinham o medo estampado nos rostos.
            A visão das ameias era bem melhor ali. Flechas estavam caindo sobre os legionários, mas parecia a Erik que elas brilhavam num estranho tom azul enquanto cruzavam o ar. Pedras e legionários voaram outra vez. Um incêndio surgiu de repente e começou a se espalhar depressa.
            Todas as tropas vilmorianas que ocupavam a cidade correram para as ameias ou para a fenda na muralha ocidental, indo enfrentar os falcos na planície nevada. Não havia mais blocos de pedra voando nem flechas caindo sobre os muros, mas o incêndio avançava como se houvesse palha seca espalhada pelo chão.
            - Magia negra – murmurou o comandante Ulfric, tocando um amuleto em forma de sol que usava no pescoço – Que os deuses nos salvem.
            O rei o olhou com desgosto. Êndor não tinha nada contra homens religiosos, Erik sabia, mas desprezava o medo acima de tudo.
            - Os deuses pouco se importam conosco – disse o rei.
            - O deus-sol se importa – teimou Ulfric.
            - O deus-sol caga em cima dos homens e limpa o cu com suas barbas – respondeu Êndor com selvageria. Ulfric se encolheu. Era um bom homem, leal até os ossos, mas às vezes parecia mais um clérigo do que um soldado.
            Não demorou para que as ameias estivessem perdidas para os vilmorianos, totalmente tomadas pelas chamas. Os legionários que não conseguiram chegar às escadas pularam para a morte ou foram queimados. Pelo menos por um momento, Teurosburg era quase uma cidade livre outra vez. As legiões de Vilmord estavam do lado de fora, combatendo os falcos, de modo que os únicos vilmorianos ali dentro eram os da comitiva do rei. Mesmo enfraquecido, o exército de Dardan era muito maior que a comitiva, mas quando Erik olhou para trás, para o castelo sobre a colina, não viu qualquer sinal de homens lançando um ataque.
            - Vamos – disse o rei de repente. Ulfric o olhou confuso. – Vamos para fora – explicou Êndor – Quero ver a luta.
            Ulfric pareceu apavorado com a ideia de chegar perto dos falcos, o que enojou Êndor.
            - Vamos para fora! – ordenou o rei aos knias, como se Ulfric não estivesse ali para fazer isso. Alguns dos guardas pareciam tão assustados quanto seu comandante, mas ninguém hesitou em obedecer.
            Erik olhou para os sulistas de Fargost. Dois deles, um alto e esguio e o outro robusto como Êndor, conversavam com o anão. Falavam em sua língua nativa, provavelmente azkadiano, portanto Erik não entendia uma palavra. O medo, no entanto, era tão visível em seus olhos quanto no tom de suas vozes.
            Fargost se aproximou do rei.
            - Gostaria de acompanhá-lo, meu amigo – disse o anão – Mas não posso arriscar as vidas de meus homens.
            Êndor assentiu.
            - Vá para Haltsberg – respondeu – Irei encontrá-lo quando tiver acabado aqui.
            - Haltsberg – repetiu o anão, deixando claro que não sabia onde ficava o lugar.
            - É uma cidadezinha perto de Söderberg – explicou o rei, depois olhou para Ródrion – Meu sobrinho é de lá. Ele será seu guia.
            Ródrion se remexeu na sela, assustado com a súbita missão.
            - Si... Sim, senhor – gaguejou o jovem primo de Erik.
            Êndor não gostava de Ródrion. Sempre deixara isso claro. Seu pai fora um traidor, um diplomata que fora pego entregando segredos de Vilmord à nobreza sulista. Para Erik isso não fazia de Ródrion um traidor também, mas essa não parecia ser a opinião do rei. Ainda assim, dera uma tarefa ao sobrinho, provavelmente para vê-lo pelas costas; mas talvez fosse um teste.
            Já estavam bem perto da brecha na muralha ocidental quando um dos knias deu o grito de alarme.
            - Teuronianos! Às nossas costas!
            O medo voltou a assombrar o príncipe. Pensou que ao se virar veria uma horda de teuronianos correndo pelas ruas, saindo de trás das casas abandonadas, mas não havia ninguém. Ao longe, porém, um exército descia a alta colina. Dardan estava lançando seu ataque. Jamais alcançaria a comitiva de Êndor a tempo, mas Erik duvidava de que essa fosse sua intenção. “Ele vai reforçar o ataque dos falcos. Vai atacar nossa retaguarda. Tolo. Abandonará a segurança de seu castelo para ser trucidado em campo aberto.”
            No entanto, quando atravessaram as muralhas e pisaram na planície nevada, a espinha de Erik gelou outra vez. Não havia possibilidade de vitória. Não para os vilmorianos.