sexta-feira, 13 de junho de 2014

Espada de Deus - Capítulo I

Este é o primeiro capítulo de outra história, intitulada ESPADA DE DEUS. Diferente de VILMORD, essa história se passa no mundo real, não numa terra fictícia cheia de dragões e elfos. Ela é narrada em 1ª pessoa e descreve as aventuras de Hermann, um guerreiro germânico do século XI que, impelido pelos ventos do destino, acabará lutando na Primeira Cruzada. Sim, trata-se de um romance histórico (embora eu odeie o termo "romance", quando aplicado às minhas histórias). E sim, eu pesquisei sobre as Cruzadas, sobre o mundo no século XI, sobre os lugares em que se passa a história e sobre os personagens reais que aparecem nela. Não sou um Bernard Cornwell da vida, mas acho que fiz um trabalho razoável.

Ah, já ia me esquecendo: NÃO recomendo esta leitura, de forma alguma, a pessoas sensíveis. O número de palavrões e diálogos nojentos é ainda maior que em Vilmord.


Capítulo I


         Sou Hermann, filho de Friedrich, e já fui chamado de Godsword pelos soldados de Cristo. Godsword, “Espada de Deus”. Fiz jus a esse apelido. Matei turcos na Terra Santa; estripei homens em nome de Deus.
         Mas tudo começou muito antes, na Germânia de 1077, quando eu tinha nove anos e mal sabia segurar uma espada. Era noite de Natal. A neve caía na cidade de Regensburg, enquanto dois homens e um menino atravessavam as ruas com uma carroça lotada de merda. O menino era eu. Um dos homens era Friedrich, meu pai, e o outro era seu melhor amigo, um padre careca e depravado chamado Konrad.
         Não havia apenas bosta naquela carroça. Havia um cadáver. Seu nome era Gunther. Acabara de ser morto. Estava bem escondido no ester-co, mas era um bêbado desgraçado e exalava um odor de urina por onde quer que passasse. O padre Konrad estava preocupado.
         - Santo Deus, Friedrich! – disse ele – O filho da puta fede mais que a merda! Vão acabar nos pegando!
         Meu pai riu.
         - Relaxe, Konrad – falou – É Natal. Quem não está na igreja está enchendo a cara ou se abrigando do frio.
         O padre olhou em volta e viu que era verdade. As ruas estavam desertas; as casas, fechadas e silenciosas, com os telhados cobertos de neve. Passamos pela taverna Heiligeklinge, um local muito freqüentado por meu pai. Uma multidão de bêbados gargalhava perto da lareira, mas não pareceram nos notar.
         Era sempre assim em Regensburg. Chegava o Natal e todos os bons cristãos corriam para a igreja, enquanto o resto enchia as tavernas e os bordeis.
         - Não se preocupe, meu bom padre – continuou meu pai – Deus nos ama.
         Foi um deboche a Konrad, que segurava com força seu crucifixo de madeira e fazia uma prece silenciosa. Aquilo era algo raro de se ver. Konrad rezando. Só fazia isso quando estava muito empolgado ou se mijando de medo.
         O temor estampado no rosto do padre pareceu divertir meu pai. Ele estava de bom humor. Havia matado um homem e escondido seu cor-po na merda, mas estava de bom humor.
         Friedrich, o ferreiro. Não era um bom cristão, por isso muita gente o odiava em Regensburg. Mas eu o amava. Lembro-me dele como um homem alto e muito forte, que cheirava a ferro e tinha as mãos quase sempre encardidas. Seus cabelos eram compridos e loiros, como os meus, e sua barba era dourada como a minha viria a ser.
         - Você vai queimar no Inferno, Friedrich – disse Konrad, mas ha-via mais irritação que ameaça em sua voz.
         - Há um lugar para mim entre os santos – debochou meu pai.
         - Os santos vão mijar na sua alma e te entregar ao diabo – retrucou Konrad – E o diabo enfiará um espeto no seu cu e te assará como um por-co.
         - Amém – disse meu pai.
         Não demorou para que chegássemos à casa de Konrad. Era uma coisa pequena, de telhado baixo e paredes espremidas, mas surpreendentemente confortável por dentro. O fogo ainda ardia na lareira quando entramos. Os cães do padre, todos os cinco, pularam sobre nós e encheram-nos de lambidas, mas ficaram mais interessados pela carroça quando farejaram o fedor azedo que vinha lá de dentro. Nunca entendi porque cães gostam tanto do cheiro de podre.
         Enquanto Konrad corria para prender seus cachorros, meu pai e eu retirávamos Gunther do meio da bosta. Além dele, ali dentro estava Witwenmacher, “Fazedor de Viúvas”, o machado que o matara. A arma estava enrolada por um pano, e graças a isso não fora tocada pela merda. Feliz com isso, meu pai começou a assobiar uma antiga canção de guer-reiros que contava como Hermann, meu xará e líder de uma tribo chamada cherusker, trucidara um vasto exército romano na floresta de Teutoburg.
         O plano era simples: despedaçar o corpo e jogar os pedaços na lareira. Eu havia sugerido que déssemos Gunther de comida aos cães, mas Konrad disse que eles não comeriam.
         Meu pai ergueu o machado, pronto para dar o primeiro golpe, enquanto o padre trazia uma faca comprida para ajudá-lo. Ao contrário de meu pai, ele não estava bem-humorado.
         - Vá dormir um pouco, Hermann – disse para mim, obviamente não querendo que eu presenciasse aquilo.
         - Hermann é um guerreiro – interveio meu pai – Acha que um pouco de sangue o assusta?
         - Vá brincar com os cachorros – insistiu Konrad, ignorando meu pai.
         Eu não estava nem aí para o sangue ou as tripas de Gunther, mas estava ficando com sono, por isso fui até os fundos da casa, onde os cinco cachorros me receberam com latidos eufóricos. Dormi um pouco ali com eles. Acordei com a voz exaltada de Konrad. Parecia estar discutindo com meu pai.
         - Estou fazendo isso por Ângela, não por você! – gritava o padre quando eu entrei na sala – Pense nela, Friedrich! Pense em tudo o que está arriscando!
         Ângela era minha mãe.
         - Diga-me, Konrad, de quantas pessoas você acha que Siegmund suspeitará? – perguntou meu pai. Siegmund era o pai de Gunther.
         - Só de uma – respondeu o padre, olhando-o fixamente – E não será uma mera suspeita.
         - Exatamente. Serei acusado, julgado e condenado. Não há como fugir disso. Sumir com o corpo não ajudará em nada.
         O padre bufou. Estava extremamente irritado, mas sabia que meu pai tinha razão. Eu, no entanto, não sabia. Era jovem e tolo o bastante para acreditar que sumir com o cadáver e mentir seriam o suficiente para salvar meu pai.
         - Você não vai cortá-lo? – perguntei, incrédulo – Não vai queimá-lo?
         Meu pai balançou a cabeça.
         - Então o que, em nome de Deus, pretende fazer? – quis saber Konrad.
         - Vou levá-lo ao bispo. Vou confessar meu crime – ele sorriu – E me arrepender dele.
         Não sei o que irritou mais o padre, a fala de meu pai ou seu sorri-so.
         - Mas farei isso amanhã – continuou ele – Hoje eu comemoro! – puxou duas cadeiras e as colocou de frente para a lareira – Venha, Konrad! Sente-se! Hermann também! Ficaremos bêbados esta noite! Nada como um gordo barril de cerveja para celebrar uma vitória. Você tem cer-veja em casa, eu suponho.
Konrad apenas o olhou. Pela expressão de seu rosto, parecia querer esmurrá-lo.
         - Tudo bem – prosseguiu meu pai – A Heiligeklinge ainda deve estar aberta. Cheia de música, fumaça, risos, bebida e putas. Não posso mais pegar putas, você sabe, mas você pode. Ou terá de súbito se tornado um padre casto e devoto? Konrad, o Santo? – meu pai soltou uma longa e sonora gargalhada, mas o padre já não estava lhe dando atenção. Fitava as chamas com olhos pensativos, a testa enrugada de preocupação.
         - Às vezes eu penso que você é idiota, Friedrich – falou de repente – Matar Gunther! Gunther, o afilhado do bispo! Gunther, filho daquele maldito Siegmund!
         O padre esperou uma resposta, mas meu pai ficou simplesmente olhando, sem dizer nada e sem alterar a expressão de seu rosto, que era de pura tranqüilidade. Parecia não se importar com a possibilidade de balançar numa forca.
         - Você deve ter um cu no lugar do cérebro – cuspiu o padre.
         Meu pai gargalhou outra vez. Eu apenas sorri, mas não achava nada engraçado. Compartilhava os temores de Konrad.
         - Gunther agarrou minha mulher – explicou meu pai, recompondo-se da crise de riso.
         - E você o matou por isso? – esbravejou o padre – Não há um homem em Regensburg que não deseje foder sua mulher! – Konrad estava nervoso, mas se desconcertou quando viu a fúria no olhar de meu pai.
         Os dois eram amigos de longa data. Riam e bebiam juntos todos os dias, mas Konrad tinha uma língua afiada demais. Meu pai não era do tipo que controlava fácil sua raiva, por isso o padre era rápido em se retratar quando seus comentários infelizes irritavam Friedrich, o temido ferreiro de Regensburg.
         - O que quero dizer – falou Konrad, agora escolhendo bem as palavras – é que esse não foi o único motivo para você o ter matado. Você o odiava. Sempre odiou.
         - Muita gente o odeia – replicou meu pai – Inclusive você, Konrad.
         - Sim, ele era um assassino disfarçado de mercador, um filho de uma puta que merecia morrer com as tripas de fora.
         - E foi o que aconteceu. Eu dei a ele o que ele merecia, padre, por-tanto louve-me ao invés de me censurar.
         Konrad bufou. Depois se virou para me olhar e disse:
         - Seu pai é um cabeça-dura, Hermann. Forte, corajoso e leal, mas teimoso como uma praga. Pelo amor de Deus, não herde isso.
         - Ele herdará – disse meu pai, profético – E ele sabe que Gunther escreveu a própria sentença de morte.
         - Ele era o afilhado bispo! – bradou Konrad, irritando-se outra vez.
         - O bispo o detesta tanto quanto eu – retorquiu meu pai calmamen-te.
         - E caso você tenha se esquecido – continuou o padre, ignorando o comentário de meu pai – ele era filho de Siegmund, que por acaso é um grande amigo de Welf, senhor de toda a Bavária! Você está fodido, Friedrich! Fodido!
         Houve silêncio. O fogo rugia na lareira, projetando uma dança de luz e sombras sobre o rosto tenso de Konrad. Na outra extremidade da casa, os cães nos observavam presos em suas correntes, com as orelhas em pé.
         - O desgraçado agarrou minha mulher – falou meu pai, agora sério – Agarrou, recebeu um tapa e a ameaçou. Ele a ameaçou, Konrad! E que tipo de marido eu seria se não defendesse a honra de minha esposa?
         - Honra? – questionou o padre em tom de reprovação – Foi por honra que você o matou?
         - Eu dei a ele a chance de se redimir. Pedi que ele se desculpasse!
         - Pediu? – duvidou Konrad.
         - Ordenei – corrigiu meu pai – Mas o filho da puta se recusou. Havia insultado minha mulher, havia insultado a mim, e se recusou a pedir desculpas! Por isso eu bati nele.
         - Bateu? – Konrad outra vez mostrou dúvida – Com o machado, eu suponho.
         - Não mato um homem sem lhe dar a chance de lutar – meu pai pareceu ofendido – Dei-lhe um murro na cara e outro no estômago. Ele caiu sentado na lama. Devia ter acabado aí. Mas o infeliz tinha uma espada.
         - E foi idiota o bastante para usá-la – completou o padre.
         - Foi. Eu apenas me defendi. O que mais poderia fazer?
Konrad ponderou por alguns instantes, como se procurasse uma resposta, mas não havia nenhuma. Meu pai fizera o que qualquer homem com um machado teria feito.
         - Ele demorou para morrer? – perguntou o padre.
         - Não muito – respondeu meu pai – Graças a Hermann.
         - Hermann?
         Meu pai sorriu.
         - Eu teria deixado o desgraçado curtir cada minuto de sua agonia, mas Hermann me pediu o machado e acabou com seu sofrimento.
         Aquilo não era totalmente verdade. Eu não quisera acabar com o sofrimento de Gunther, mas sim lhe causar mais sofrimento ainda. Golpe-ei-o pelo menos uma dúzia de vezes, no peito, na cabeça e no pescoço. Eu era forte para minha idade e Witwenmacher era bem afiado, mas também era pesado, o que tornava meus golpes desajeitados. Acelerei a morte de Gunther e com certeza não lhe causei tanta dor quanto esperava.
         - Você o matou? – Konrad me perguntou, nitidamente surpreso. Ele fora soldado antes de ser padre, portanto tinha visto muita coisa sangrenta, mas um menino de nove anos matando um homem era novidade.
         - Matei sim – respondi com orgulho, um orgulho de guerreiro que já brotava em mim.
         - E você... gostou disso?
         - Gostei muito – falei. E tinha gostado mesmo.
         Meu pai riu e bagunçou meu cabelo, satisfeito por eu estar me tornando um Friedrichzinho. Konrad estava pasmo. Fez o sinal-da-cruz. Mas de repente desatou a rir também, como se o sinal-da-cruz o tivesse feito lembrar uma piada.
         - Vocês vão para o inferno – falou, ainda rindo – Os dois.
         - Então te encontraremos lá – disse meu pai.
         - Que assim seja – tornou Konrad.
         - Amém – disse eu.

2 comentários:

  1. Realmente, ler este capítulo me agradou de mais cara, parabéns Thor, estava tão intrigado para saber como vc escrevia, ver como vc organizava as coisas e eu gostei bastante, não só por vc estar fazendo o que gosta, mas por estar se dedicando (ao contrário de mim). Como todo bom e velho escritor, creio que o futuro o aguarda, e com boas surpresas.
    Não vou dizer o impacto positivo que você exerceu sobre mim agora, mas vou fazer algo melhor. Faça um pequeno trecho (fora do contexto de qualquer história que você pense em continuar), e brinque com ele, adicione detalhes de mais (ao meu ver é visto como um treino para descrição de lugar e melhor interpretação não só de você mas do leitor), adicione ações mais elaboradas (longas) e outras coisas do tipo. Talvez isso que você escreveu pode virar uma futura história que você gostou, ou sirva apenas de inspiração e treino.
    Forte abraço Thor, vou voltar com meu blog de madrugada (isso foi o impacto que você causou sobre mim), boa sorte ai, e se precisar de ajuda com divulgação, só chamar!

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  2. Valeu, Leo! Que bom que eu te inspirei positivamente, cara! Continue escrevendo também, e boa sorte com o seu blog!

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