quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Vilmord - Prólogo

PRÓLOGO
Ano 1663 d.i.

- Não há elfos aqui - disse o mestre Sharabad.
- Como você pode saber? - perguntou Joseph.
- Não há elfos - repetiu o mestre - Não precisa ter medo.
- Não tenho medo, velho.
Os dois eram Guardiões. Desde a expulsão dos Altos Elfos no século VII, a Ordem dos Guardiões era a única que ainda se dedicava à sagrada tarefa de matar aquelas criaturas, quando uma delas se atrevia a retornar a Azällor. Não que fizessem isso com frequência. A última vez fora há quase cem anos. O crânio da criatura ainda enfeitava o grande salão da Fortaleza Branca dos Guardiões.
- Eu gostaria muito de encontrar um elfo - disse Joseph.
- É claro que gostaria - respondeu o mestre Sharabad num sarcasmo seco.
- Zomba de mim?
O mestre não respondeu.
- Velho idiota - prosseguiu Joseph - Se acha melhor do que eu só porque tem algumas décadas a mais nas costas?
Sharabad continuou em silêncio. Aprendera havia muito tempo que não valia a pena argumentar com homens como Joseph. Naqueles dias a Ordem dos Guardiões estava cheia deles: sujeitos mesquinhos, com pouco senso de honra ou respeito, que se consideravam superiores a todo o mundo porque eram síneos. Nem mesmo outros síneos eles respeitavam.
Em outros tempos, tempos que antecediam muito o nascimento de Sharabad, a insolência de Joseph seria punida com rigor. Mas nos últimos séculos a Ordem havia ficado tão escassa de homens e mulheres que passara a aceitar praticamente qualquer um que possuísse o dom da sinésia. Joseph, de cabelos curtos e loiros cuidadosamente penteados para trás, nascera em Laemôria, onde descobrira seu dom e entrara para a Ordem do Sol. Depois de ser expulso por indisciplina, entrara para a pouco prestigiada Ordem dos Guardiões, que o recebera de bom grado.
Para a sorte de Joseph, Sharabad era um homem que dificilmente se enfurecia. Alto, negro, com músculos ainda fortes e uma longa barba grisalha, ele era um dos mestes mais poderosos de sua Ordem. Com um único golpe de sua cimitarra poderia abrir Joseph como um saco de tripas. Mas, claro, haveria problemas. O grão-mestre descobriria. Sharabad seria punido com a morte ou, na melhor das hipóteses, expulso da Ordem.
“O rapaz é idiota, ranzinza e mal-educado”, dissera o grão-mestre quando dera a Sharabad aquela missão. “Mas luta bem. Ele será útil caso você tenha surpresas”.
Com surpresas ele queria dizer elfos. Sharabad nunca enfrentara um, mas treinara quase a vida inteira para isso e já lutara contra síneos de outras Ordens. Supunha que matar um elfo não era tão diferente de matar um síneo. De qualquer forma, Sharabad não acreditava que houvesse qualquer perigo naquela pequena ilha. Como um mestre síneo, era capaz de sentir as formas de vida ao redor. Na ilha não havia nenhum ser inteligente, a não ser Joseph e ele.
Os dois caminhavam agora em silêncio. A chuva tinha parado fazia algum tempo, mas as folhas das árvores continuavam molhadas, de modo que gotas pingavam sobre as armaduras dos síneos enquanto eles andavam. Fora isso e o som de seus passos no chão enlameado, nada mais podia ser ouvido. Nem mesmo o canto de pássaros, embora Sharabad sentisse a presença deles.
- Não gosto desse silêncio - falou Joseph.
- Não há elfos, jovem. Eu já disse.
- Dane-se o que você disse. Eu sinto que estamos indo para uma armadilha.
- Você sente? Você ainda não tem essa capacidade, rapaz.
- Tenho sim, velho, e muito mais apurada que a sua.
Mais uma vez Sharabad preferiu não discutir.
Não muito tempo depois, encontraram uma clareira. As nuvens estavam se dissipando e o sol brilhava sobre o terreno salpicado de poças de lama. E ali, no centro da clareira, estava o templo arruinado.
- Aqui estamos - disse o mestre.
- Ainda não entendo o viemos fazer nesse fim de mundo - reclamou Joseph.
- A princípio, apenas esperar.
- Esperar o que?
- Pelos outros.
- Outros virão?
- Talvez o próprio grão-mestre venha.
Aquilo fez o rapaz engolir seco. Até mesmo ele ficava nervoso na presença do grão-mestre.
Esperaram dentro do templo. Por fora, ele não parecia nada além de um amontoado de blocos de pedra e colunas partidas; uma monstruosidade rochosa de cujas entranhas cresciam árvores maiores que o próprio templo. Por dentro era ainda pior. As raízes se emaranhavam em meio aos destroços do ladrilho que outrora cobrira o chão. O teto desabara quase que por completo, e mesmo assim, devido à densidade da folhagem das árvores, pouca luz entrava no recinto.
Joseph ficou olhando enquanto Sharabad movia as mãos sobre a pilha de madeira seca que havia feito. O cristal sinético, pendurado ao pescoço por uma corrente, estava escondido sob as vestes e a armadura, mas seu brilho podia ser visto. Um estalo e um clarão anunciaram que a magia dera certo. A fogueira estava acesa. Sharabad esperou sentado ao lado dela, mas Joseph parecia ansioso. Levantou-se e começou a andar pelo templo. Conjurou uma pequena luz para ajudá-lo a enxergar.
Horas depois, já no fim da tarde, o terceiro membro da equipe apareceu. Kaya era seu nome. Chegou silenciosa como sempre, mas Sharabad já sentira sua aproximação. A ligação entre os dois era forte. Ela era tão jovem quanto bela. O velho mestre a estimava como a uma filha, mas, se fosse algumas décadas mais novo, a estimaria de outra forma. Kaya era do Oeste como Joseph, mas ela viera do povo da Floresta de Aharash. Sua pele era avermelhada e os olhos eram levemente puxados. Vinha vestida com o manto de peles característico de seu povo. Não usava armadura, e como arma, além do cristal, tinha um longo arco de caça e uma aljava bem provida de flechas.
- Seja bem-vinda, minha querida - cumprimentou Sharabad, com o sorriso paternal que sempre lhe vinha ao rosto quando a via.
- Mestre Sharabad - respondeu ela com seu doce sorriso de criança, embora já não fosse uma. - Joseph - acrescentou ao jovem laemoriano, que apenas assentiu em resposta.
- Alguma notícia dos outros? - perguntou o mestre.
- Jin e Farah estão a caminho - respondeu ela - Os irmãos gaélicos chegarão em uma semana.
- Uma semana? - surpreendeu-se Sharabad - Não sabia que teríamos que esperar tanto. E quanto ao grão-mestre?
- Ele virá, mas não disse quando. Disse para iniciarmos o trabalho sem ele.
- Que trabalho? - perguntou Joseph.
- O trabalho que viemos aqui para fazer - respondeu o mestre.
- E que trabalho seria esse? - tornou a perguntar, já impaciente, o arrogante laemoriano.
Sharabad suspirou.
- Este templo não foi erguido em honra a nenhum deus - começou a explicar - Pelo menos nenhum dos nossos deuses. No primeiro século depois da...
- Poupe-me da aula de história, velho - interrompeu Joseph - Quero saber porque o grão-mestre me enviou a essa ruína maldita.
Sharabad abriu a boca para falar, mas agora foi Kaya quem o interrompeu:
- É melhor começar a ter mais respeito, Joseph!
O laemoriano a olhou. Em seu rosto não havia nada além de raiva e desprezo.
- Ou o que? - disse ele - Vai me dar uma lição? Acha que eu tenho medo de você, selvagem?
Selvagem. Era assim que os laemorianos se referiam ao povo de Kaya.
- Essa discussão acaba aqui - inverveio Sharabad - Joseph, o grão-mestre acredita que há um compartimento secreto neste templo. E dentro deste compartimento está o que tem atraído os elfos de volta a Azällor. Nossa missão é encontrar essa... coisa. Seja lá o que for.
- E por que o grão-mestre acha isso? - perguntou o jovem.
- Isso eu não sei.
- É claro que não - retorquiu Joseph com desdém. Kaya o fitou com ódio, mas Sharabad mais uma vez interferiu.
- Kaya, comece a procurar daquele lado. Joseph, você procura deste.
Assim que Kaya se afastou, o mestre puxou Joseph de lado e lhe lançou um olhar tão duro quanto o do próprio grão-mestre.
- Nunca mais a chame de selvagem.
Mas o laemoriano não se intimidou.
- Ah, o que foi agora? O velhote se irritou porque eu ofendi sua putinha?
Aquilo foi mais do que Sharabad podia aguentar. Ele soltou o braço de Joseph, mas, com a outra mão, invocou o poder do cristal. Este brilhou intensamente enquanto o laemoriano começava a gemer. Ele estava paralisado. Seus ossos, músculos e nervos estavam sob o controle de Sharabad. Se ele quisesse, poderia destruir o jovem arrogante ali mesmo, lentamente, de dentro para fora. Joseph suava. Tentava falar, tentava xingar, mas tudo o que conseguia era soltar gemidos patéticos. Sharabad podia ler seus pensamentos. Ele queria matá-lo. E queria ferir Kaya. Com isso, o velho mestre percebeu que não poderia deixá-lo viver.
Mas então Sharabad sentiu a pontada nas costas. A dor foi tamanha que o fez cair de joelhos. Olhou para baixo. Algo havia trespassado seu corpo. Parecia uma lâmina, mas tinha um ar espectral e brilhava como um cristal sinético.
Joseph, à sua frente, agora livre do poder de Sharabad, sacou a espada e virou para enfrentar as criaturas que vinham às suas costas. O velho mestre tentou se levantar. Esforço vão. Tentou levar a mão à cimitarra que pendia do cinto, mas mesmo isso era um martírio. O sangue escorria de seu peito aberto e formava uma poça sob seus joelhos dobrados.
Joseph, cercado pelas criaturas, ainda lutava. Sharabad tentou invocar o poder do cristal para ajudá-lo, mas então ouviu o grito de Kaya. Um grito de puro terror.

- Kaya! - chamou ele. Tentou se levantar novamente, mas uma nova pontada o fez cair de bruços. A última coisa que viu foi Joseph sendo estraçalhado por uma dúzia de lâminas cintilantes.

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