quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Vilmord - Parte 1 (atualizada e terminada)

Eis aqui a PARTE 1 de VILMORD, de certa forma terminada (embora todo o material publicado aqui esteja sempre sujeito a modificações). Nesta versão, além de concluir a narrativa dessa 1ª Parte, fiz alterações em alguns nomes de personagens e lugares, além de algumas no próprio texto. Também fiz uma alteração significativa na tecnologia desse meu mundo fantástico, migrando de uma "fantasia medieval" para uma "fantasia moderna", ou "renascentista", com catapultas e flechas dando lugar a canhões e arcabuzes.

1ª PARTE: A BATALHA DE LUNDEBURG

Capítulo I

Estava frio demais. Fargost era um anão, raça dura e obstinada, mas aquela península era impiedosamente gelada. Viajavam havia semanas desde as terras quentes do Sul. Não estavam tão longe de seu objetivo, mas a temperatura parecia cair um pouco mais a cada passo que davam.
- Não vejo o sol há dias - reclamou Hassan, tremendo como uma vara verde. Tal como os demais companheiros de viagem de Fargost, Hassan era um sulista, de pele morena e pouco gosto pelo frio.
- É sempre inverno aqui? - perguntou Ahmed, igualmente mal-humorado, observando a campina endurecida pela geada.
- Estamos na primavera - respondeu Fargost - O calor ainda está começando.
- Calor? - escarneceu Hassan.
- Ouvi dizer que Nordgard é amaldiçoada - interveio Sayid, um jovem mesquinho cujos comentários estúpidos sempre irritavam Fargost - Os homens do Norte conspiraram contra o deus-sol. Em troca, ele os deixou sem luz e sem calor. O ar se torna mais frio a cada ano. Chegará um dia em que todos os rios e lagos de Nordgard terão congelado, todas as plantas e animais terão morrido e a raça bárbara do Norte enfim será extinta.
- Faz sentido - disse Ahmed.
- Foi a coisa mais idiota que eu já ouvi - disse Fargost - O deus-sol é tão adorado aqui quanto em qualquer outro lugar. A “raça bárbara do Norte” tem muito mais luz e calor do que aqueles pobres Guardiões do Ártico poderiam sonhar em ter.
- Quem me disse isso foi um síneo, senhor Fargost - defendeu-se Sayid - Um alquimista de Shariq.
- Então os alquimistas de Shariq são tão bons em seu ofício quanto você em um duelo - devolveu o anão. O grupo inteiro gargalhou, com exceção do jovem Sayid. Fargost se lembrou do dia em que o espancara com uma espada de madeira na arena de duelos. Toda a corte jínada assistira àquilo, inclusive o próprio sultão. - Foi uma luta memorável - completou o anão, levantando uma nova leva de gargalhadas.
Sayid corou de raiva. Fargost ficou satisfeito. Adorava irritá-lo. Pôde ver nos olhos do rapaz que sua vontade era de puxar a espada e decapitá-lo ali mesmo, mas se tentasse seria derrubado e espancado outra vez. Agora as espadas eram de verdade, então era provável que o jovem saísse com uma orelha ou alguns dedos a menos. Devia saber disso, pois em vez de atacar o anão limitou-se a segurar as rédeas com força, certamente imaginando que eram o pescoço de Fargost.
Sem mais gracejos ou insultos dos quais rir, o grupo prosseguiu em silêncio. Os sorrisos voltaram a dar lugar às carrancas. Fargost suspirou. O humor de seus companheiros havia piorado muito desde que o sol se escondera. Na península de Nordgard o sol se escondia com frequência demais.
O grupo era razoavelmente grande. Cinquenta guerreiros acompanhavam o anão, embora para ele fossem quarenta e nove guerreiros e um jovem idiota que pensava saber usar uma espada. De qualquer forma, todos estavam bem armados. Vinham montados em velozes cavalos de guerra, com exceção de Fargost, que montava seu fiel pônei Tegg.
Sorrindo, o anão levou a mão à cabeça de Tegg e o acariciou atrás das orelhas. O pônei adorava aquilo. Fargost o criara desde filhote. Alimentara-o e o vira crescer, como um pai a um filho. O anão tinha seus próprios filhos, mas o amor que nutria pelo pônei era quase tão forte quanto o que tinha por eles.
Enquanto ainda o coçava, notou algo estranho no modo como ele mexia as orelhas e farejava o ar. “Está ouvindo algo”, soube o anão de imediato. Conhecia Tegg bem o suficiente para saber quando estava nervoso.
Quando ele próprio parou para escutar, não notou nada fora do comum a princípio. Cascos pisoteando a terra, armaduras chacoalhando, espadas e arcabuzes balançando nas selas. “Mas há algo mais”, percebeu o anão. Um som constante e longínquo vinha do norte, direção na qual eles seguiam. Na verdade era um conjunto de sons; ecos idênticos, dezenas deles, os inconfundíveis estampidos de tiros de canhão.
- Fargost! - chamou Hassan - Ouve isso? Há luta ao norte!
- Estou ouvindo - respondeu o anão. Passando os olhos ao redor, viu que os cavalos estavam tão inquietos quanto os homens.
- O que fica naquela direção? - quis saber Ahmed.
- Lundeburg - respondeu Fargost - A capital da Ânglia.
- Já entramos na Ânglia? - Hassan mostrou surpresa.
- Há alguns dias - tornou Fargost. Não era de se espantar que Hassan não tivesse notado. A Ânglia era um reino pequeno e de povoamento esparso, de modo que muitos viajantes entravam e saíam dele sem perceber.
- Devemos passar o mais longe possível da batalha - disse Ahmed.
Aquilo era óbvio. Quem quer que estivesse lutando, não era problema deles. Sua missão era no reino de Vilmord, bem mais para o norte. Mas se fosse Vilmord que estivesse lutando…
- A Ânglia é colônia de Vilmord? - perguntou Hassan. Parecia estar pensando a mesma coisa.
- Não - respondeu Fargost – Ainda não.
“Ainda não. Mas talvez estejam enfrentando as legiões vilmorianas neste exato momento.”
- Colônia ou não, devemos deixar a Ânglia imediatamente - Ahmed mantinha-se inflexível - A guerra não faz parte de nossa missão.
- Que os nórdicos se matem uns aos outros! - acrescentou Sayid, iluminando a todos com mais um de seus comentários.
- O que fica a oeste? - perguntou Ahmed.
   - Chevaliôn - disse Fargost - Depois o Lago de Gelo.
- Os chevaliers são amigáveis? - questionou Hassan.
- São ferrenhos inimigos de Vilmord - respondeu o anão - Como todos os outros povos ao sul, ao leste e a oeste, e a maioria ao norte.
- Ou seja, todos os outros povos de Nordgard - concluiu Hassan.
- Exato. Até agora passamos por reinos pequenos e fracos, reinos de homens que preferem correr e se esconder ao verem um grupo de estranhos em suas terras. Depois da Ânglia as coisas mudam. Chevaliôn a oeste e Kert a leste. Ambos reinos poderosos que espumam de raiva contra Vilmord. Arrancarão nossas tripas se descobrirem sobre nossa missão.
- Que venham! - exclamou Sayid, com a mão pateticamente pousada sobre o cabo da espada - Não temo os bárbaros do Norte!
- Tampouco eles o temem, bravo guerreiro do Sul - debochou Fargost, fazendo o rapaz corar outra vez.
- Perigo a leste e a oeste - disse Ahmed - E quanto ao norte?
- Teutônia - respondeu o anão - Reino antigo e outrora poderoso, mas atualmente ocupado pelas tropas de Vilmord.
- Uma colônia vilmoriana - Hassan concluiu o óbvio - É por ali que devíamos seguir. As legiões nos escoltariam às Montanhas Negras.
- Escoltariam - concordou Fargost. Aquilo lhe trouxe uma torrente de lembranças simultâneas. As altas montanhas de rocha escura que formavam o reino do Vilmord, as belas prostitutas de Vílerath, os legionários com seus uniformes azuis e brancos, o jovem príncipe vilmoriano a quem Fargost devia a vida…
“Rei”, corrigiu o anão. “Ele agora é o rei. Ênor Gurorson Ultren, rei de Vilmord.”
- Concordo que é mais sensato seguir por território anglo até a colônia de Vilmord - disse Ahmed, despertando Fargost de seu breve devaneio - Mas não pela capital. Não importa se são vilmorianos atacando. Não viemos aqui para uma guerra.
- Ninguém falou em entrarmos na guerra, Ahmed - observou Fargost.
- Não quero nem ao menos passar perto dela, Fargost.
- Mas passará - o anão endureceu a voz - O sultão me nomeou comandante dessa expedição, então trate de manter seu cavalo seguindo o rastro do meu Tegg.
Ahmed suspirou. Nunca fora e certamente nunca seria insubordinado. Além disso, a amizade que tinha por Fargost era antiga e enraizada, daquelas que superam qualquer ressentimento causado por algumas palavras duras. Sayid, no entanto, olhava de um modo irritante, para Ahmed, como que se perguntando porque o forte guerreiro aguentava aquilo calado, ao invés de arrancar a cabeça do anão.
Resistindo à tentação de mandar Sayid para as fileiras de trás, o que contrariaria as ordens do sultão de mantê-lo ao seu lado, Fargost se pôs a pensar sobre o que os aguardava em Lundeburg.
- Fargost - chamou Hassan - Talvez Ahmed tenha razão. Por que chegar perto de uma batalha, se viemos em missão de paz?
- Porque quanto mais perto estivermos de uma legião vilmoriana mais seguros estaremos.
- Certo, mas... E se não forem vilmorianos? E se os homens de Chevaliôn ou de Kert estiverem invadindo a Ânglia?
Fargost não respondeu. Não queria responder. Não tinha que responder. Queria ir àquela maldita cidade e ver aquela maldita batalha. Por isso esporeou Tegg e avançou a trote rápido. Imediatamente, sem questionar, seus homens fizeram o mesmo com seus cavalos.



Capítulo II

O príncipe Erik estava quase entediado. Não que a guerra o entediasse, mas aquela era a quinta vez que acompanhava a Legião numa batalha por conquista; e a luta se desenrolava exatamente como nas quatro vezes anteriores. No início, o reino invadido sempre fugia ao avanço de Vilmord. Então concentrava suas forças na cidade mais forte e ali resistia ferozmente durante algum tempo, mas logo começava a morrer. Os anglos haviam escolhido sua capital, Lundeburg, a única cidade do reino, como ponto de resistência. Causaram pesadas perdas aos vilmorianos no primeiro dia, mantiveram alguma força no segundo, começaram a fraquejar no terceiro e agora, no quinto dia de cerco, estavam à beira da derrota.
Chevaliôn e Kert, velhos inimigos de Vilmord, teriam sem dúvida enviado auxílio à Ânglia, o que dificultaria as coisas. Mas os vilmorianos eram conquistadores cautelosos. Quatro legiões haviam sido enviadas a Chevaliôn e três a Kert, com ordens de “saqueá-los e distraí-los”, segundo as palavras do próprio Conselho. Por isso a Ânglia agora enfrentava sozinha cinco legiões vilmorianas sedentas por glória.
Erik olhou para o pai. O velho homem tinha estampada no rosto a nobreza que lhe corria nas veias. Os cabelos lisos e grisalhos desciam até os ombros. Os olhos, profundamente azuis, não se desviavam da batalha por um segundo sequer. Uma barba negra salpicada de cinza, muito bem aparada, adornava seu rosto régio. Ênor, rei de Vilmord, estava vestido para a guerra, com armadura completa, embora usasse uma coroa no lugar de um elmo. Uma coroa de pedra cravejada de joias. Embainhada às suas costas encontrava-se Dente de Dragão, a quase milenar espada da Casa Ultren, forjada em mithril e abençoada por deuses.
O príncipe possuía os mesmos cabelos negros que o pai tivera na juventude, também cortados na altura dos ombros, e a mesma barba escura. Os olhos, herdados da mãe, eram azul-acinzentados como o mar do Norte. Também usava armadura e na cabeça não tinha elmo ou coroa. A espada que portava, presa ao cinto, era menor que a do pai e forjada em aço comum.
Apesar de vestidos para a guerra, pai e filho se encontravam longe da luta, observando-a do topo de uma pequena colina. Ambos estavam montados em robustos corcéis de batalha, também vestidos com placas de aço, além de tecidos brancos a azuis, as cores de Vilmord. Acima de suas cabeças, estandartes tremulavam exibindo as Estrelas Gêmeas do Norte e o dragão branco da Casa Ultren. Um regimento inteiro de knias, os guardas pessoais do rei, formava um espesso círculo ao redor da colina.
- Idiotas - disse Erik, olhando os anglos morrerem.
- Julga-os idiotas por terem coragem? - indagou o rei.
- Julgo-os idiotas porque morrem quando poderiam viver. Não sou covarde, pai. Admiro a coragem tanto quanto você. Mas existe uma diferença, uma linha muito tênue, entre a coragem e a tolice. O que aqueles homens estão fazendo é pura tolice.
- E o que você faria? Dobraria o joelho? Ficaria de quatro e deixaria os invasores te foderem? – o rei gargalhou sonoramente, mas Erik não encontrou graça na piada.
Ênor, o Forte, era como o chamavam, mas havia momentos em que o rei merecia o epíteto de “o Rude”.
- Então isso é tudo a que nossas guerras se resumem? - perguntou Erik - Foder nossos vizinhos?
- Não só os vizinhos. Chevaliers e eslavos, anglos e kértios, homens-lobo e homens-aranha. Vamos foder todos os reinos do Norte, cada um deles, até que não reste uma única bunda intacta em Nordgard.
Dessa vez o rei não riu, mas o divertimento estava tão visível em seu rosto quanto em sua voz. Erik ouviu um risinho vir da direita. Ao olhar se deparou com Helgar, seu primo e melhor amigo, assistindo à batalha com a expressão de quem assiste a um espetáculo teatral de comédia.
- O que é tão engraçado, primo? - quis saber Erik.
- Nossos homens fodendo os anglos - respondeu Helgar.
O rei gargalhou com aquilo.
Mas Erik não. Não era avesso à guerra, porém jamais a vira como uma piada. “A guerra é o meio mais fácil de se formar um império, mas não é o mais eficaz”, dissera-lhe uma vez seu avô materno, Ulrik, earl de Homeinberg. O avô morrera havia quinze anos, mas suas palavras permaneceram.
- Um ditado laemoriano diz que a guerra é um instrumento da paz - disse o príncipe.
- É claro que é - concordou o rei - Não existe paz maior que a morte.
- Não é esse o sentido! - Erik estava quase com raiva - A guerra muitas vezes é um caminho para a unificação, e a unificação traz a paz.
- A unificação é uma jaula - retrucou o rei.
Erik não entendeu.
- Imagine que cada reino de Nordgard é uma mulher - continuou seu pai - E que nós, vilmorianos, somos um tarado com o pau duro. Saquear um reino, como os kértios e os eslavos fazem, seria o mesmo que estuprar uma mulher uma vez. Mas nós somos um tarado ambicioso. E preguiçoso. Não queremos ter que correr atrás de uma mulher e lhe rasgar a roupa toda vez que quisermos fodê-la. Por isso pegamos cada uma dessas mulheres e jogamos numa jaula, nua e amarrada, de pernas abertas, para podermos fodê-la sempre que nos aprouver.
Helgar soltou outro risinho.
- O senhor seu pai possui um senso de humor muito peculiar - explicou quando Erik o olhou - Uma mistura de sagacidade régia com brutalidade guerreira.
Aquilo era mais que verdade. Ênor era um rei em todos os sentidos, mas também um guerreiro, brutal e ríspido como qualquer outro. Erik temia que tivesse herdado apenas a parte régia.
- Dizem que no Sul o sultão jínada é amado por todos os súditos - falou o príncipe, sem saber direito porque.
- Quem lhe disse isso não deve ter conhecido muitos homens do Sul - respondeu o rei - Sua tia conheceu. E seu primo também.
O primo a quem Ênor se referia não era Helgar, mas Ródrion, cujo cavalo estava logo atrás do de Erik. Ródrion se remexeu nervosamente na sela ao ouvir o rei falar sobre ele. Sempre parecia ficar tenso quando o rei lhe dirigia um olhar ou uma palavra. “Tem bons motivos para isso”, pensou Erik.
- Minha mãe viveu muito tempo em terras sulistas - disse Ródrion, claramente desconfortável com o assunto - Mas eu vim para o Norte aos seis anos, jovem demais para me lembrar de muita coisa.
- Então perguntaremos a sua mãe quando tivermos acabado aqui - respondeu o rei - Erik precisa de umas boas aulas sobre o Império Jínada e sua realidade.
“Não. É o senhor quem precisa de aulas. O senhor e todos os homens de Vilmord.”
Erik volta e meia se via questionando o modo como as colônias eram governadas. Era um constante saque, como seu pai dissera. Vilmord sugava dos povos conquistados a maior quantia de sangue possível sem lhes tirar a vida. “Mulheres nuas na jaula”. Era uma metáfora totalmente válida. “Mas e se pudéssemos conquistá-las em vez de estuprá-las? E se fôssemos capazes de libertá-las e fazer com que nos amassem? Fazer com que abrissem as pernas de boa vontade e sentissem prazer em nossa foda...”
- Também já ouvi falar que o sultão é muito amado em todo o Sul - disse Helgar, interrompendo as reflexões do príncipe.
- Ah, é? - o rei não pareceu se importar. Tinha os olhos fixos na batalha outra vez.
- Porém - continuou Helgar - o Império Jínada é hoje um poder instável. É verdade que enfrentou poucas rebeliões nos últimos tempos, mas a cada uma delas a unidade imperial ameaçou ruir por completo.
Aquilo chamou atenção suficiente do rei para fazer com que desviasse o olhar da luta.
- As colônias são governadas por senhores de sua própria gente - prosseguiu Helgar - São regidas por suas próprias leis e dotadas de seus próprios exércitos. São livres, em todos os sentidos da palavra. Isso faz com que muitos acabem por amar seu soberano e conquistador. Mas há um preço.
- Insubordinação - disse o rei - Falta de controle. A paz só é mantida enquanto as colônias querem que ela seja mantida. Por mais que digam idolatrar seu sultão, atacam-no sem piedade ao primeiro sinal de fraqueza.
Ênor lançou um olhar duro ao filho, um olhar que ordenava que ele enfiasse aquela lição na cabeça.
- Enquanto nós governamos nossas colônias com pulso de ferro - disse o príncipe - Também enfrentamos rebeliões, mas nenhuma delas ameaçou arruinar nosso império. Isso porque destruímos totalmente o poder dos povos que conquistamos, deixando-os fracos demais para causar problemas significativos.
- O que às vezes é tedioso, mas mantém nosso poder inquebrável - disse o rei - Punho de ferro, você diz. Punho de mithril, digo eu - Ênor tocou o cabo de Dente de Dragão por cima do ombro.
Aquilo fez com que Helgar abrisse um largo sorriso cheio de malícia. Os traços de seu rosto não se assemelhavam nem um pouco aos de Erik. Os olhos eram azuis como os de Ênor, mas os cabelos, cortados curtos, eram ruivos. Ruiva também era sua barba. Erik o chamava de primo, mas a verdade era que não havia consanguinidade entre os dois. O pai de Helgar era Ralf, earl de Österheim e marido da irmã mais velha do rei, porém Helgar era fruto de seu casamento anterior.
O rei o tinha em grande estima. Helgar e Erik haviam crescido juntos e tinham praticamente a mesma idade, sendo Helgar alguns meses mais velho. Eram amigos inseparáveis. Fora Helgar quem apresentara a Erik a primeira garota com quem fornicara. Era Helgar quem ouvia suas confissões e quem ele buscava primeiro quando precisava de conselho. Às vezes parecia a Erik que a mente de seu primo tinha o dobro da idade de seu corpo. Em certos assuntos não era nem de longe um conselheiro tão bom quanto Rikbald, o Clérigo do Rei, mas quando se tratava de política e astúcia não havia mente mais capaz que a de Helgar.
Ródrion era diferente. Em quase todos os sentidos. Possuía sangue Ultren, o sangue do rei, mas pelo lado materno. Sua mãe era Annabeth, irmã mais nova de Ênor, e o pai era Wilfred da Casa Torbolk. Viviam no Sul como representantes diplomáticos quando ela foi informada das acusações de traição contra o marido. Annabeth imediatamente fugiu de volta ao Norte, trazendo consigo o pequeno Ródrion. O marido veio em seu encalço e, sendo o idiota que era, acabou capturado pelas tropas de Vilmord e enforcado por ordem de Ênor e do Conselho.
Tudo se passara havia mais de dez anos. Ródrion fora criado na corte, com todo o conforto a que um sobrinho do rei tinha direito, mas havia quem dissesse que a semente de um traidor podia gerar apenas outro traidor. Erik se afeiçoara ao primo mais novo quase tanto quanto a Helgar, a despeito de tais acusações. O rei, no entanto, pouco fazia para mascarar seu desconforto em relação ao garoto. Para seu azar, Ródrion se assemelhava muito ao pai fisicamente. Tinha os olhos verdes e o maxilar forte dos Torbolk, bem como os cabelos dourados. Mantinha-os curtos na frente, nos lados e na parte de cima da cabeça, mas na parte de trás uma longa trança lhe descia até a metade das costas. A barba, igualmente loira, era rala e muito bem cortada, presente apenas no queixo. Erik acreditava que o primo só não a arrancava porque em Nordgard um homem era considerado afeminado se não tivesse uma barba.
Ao contrário de Helgar, Ródrion não tinha muito estômago para a política. Seu elemento era o campo de batalha. Ainda não completara vinte anos, mas era quase tão robusto e cheio de músculos quanto Ênor. Também lutava quase igualmente bem. O tempo certamente o tornaria um guerreiro tão hábil e duro quanto o rei.
- Vitória! - gritou de súbito um dos guardas reais. O grito foi seguido por um mar de urros e lanças se erguendo em celebração.
Longe, na capital sitiada da Ânglia, um canhão acabara de despedaçar boa parte da já enfraquecida muralha ocidental. Ênor aconselhara aos generais que concentrassem ali toda a força de sua artilharia. Erik viu seu pai sorrir satisfeito, orgulhoso de sua infalível perícia militar.
- Acabou - disse Helgar, tão satisfeito quanto o rei.
- Acabou - concordou Ênor, enquanto os legionários jorravam pela larga brecha na muralha e inundavam a cidade angla.




Capítulo III

O estrondo foi como uma bofetada na alma de Dardan. Mesmo distraído como estava, matando vilmorianos, soube do que se tratava assim que ouviu. “A muralha ocidental”, pensou, enquanto enterrava um dos machados no ombro de um legionário. O homem gritou e cambaleou, mas ainda teve força para afastar Dardan com a espada. Tentou uma estocada rápida, da qual Dardan se esquivou com facilidade, para em seguida atingir o legionário na perna, nas costelas e no pescoço, derramando-lhe a vida nas ameias já ensanguentadas de Lundeburg.
Dardan, rei da Ânglia, era uma criatura mortífera com seus dois machados. Nunca sentira prazer em em tirar vidas, mas definitivamente nascera para a luta. Além disso, estava ali para defender a liberdade de seu povo, uma causa pela qual valia a pena matar.
Dardan se assemelhava mais a um guerreiro oriental do que a um rei nórdico. Não tinha os olhos puxados nem a pele amarelada dos homens do Leste, mas vestia o kimono da Ordem dos Quatro Elementos, da qual fazia parte. Tinha os cabelos longos e negros, presos numa única e comprida trança, ao estilo oriental. A barba trançada era um dos poucos indicadores de sua cultura nórdica. Não ostentava coroa nem usava elmo. Em vez de aço, trajava uma armadura de couro por baixo do kimono, leve o bastante para não lhe atrapalhar os movimentos.
Havia ainda cinco legionários vivos à sua volta. Matou o primeiro quando este tentou lhe atingir pelas costas. Os outros avançaram, aproveitando-se do momento de distração, mas Dardan era leve e rápido como o ar e seus machados mordiam com a fúria do fogo. Dois legionários recuaram enquanto os outros dois agonizavam no chão.
Os sons do desabamento haviam cessado, sendo agora substituídos pelo rugido uníssono de milhares de vozes que invadiam a cidade. “Estamos perdidos”, soube Dardan. Os dois vilmorianos à sua frente trocaram um rápido olhar e depois se afastaram, a passo lento e de costas, receosos de que o anglo os atacasse por trás enquanto recuavam para junto de seus companheiros. “Estão certos em temer”, pensou Dardan. Correu na direção deles, saltou de lado quando o primeiro tentou espetá-lo com a lança, fingiu um golpe alto, fazendo o homem erguer o broquel, mas atacou por baixo. Enquanto caía de joelhos, com uma das pernas sangrando, o lanceiro tentou outra estocada, mas atingiu apenas o ar. Um chute com a força da terra mandou para longe seu broquel e um machado caiu sobre sua mão direita, fazendo-o largar a lança. Sem arma e sem escudo, aberto para a morte, ele lançou a Dardan um olhar que suplicava misericórdia. “É tão jovem”, percebeu o rei da Ânglia. “Deve ser sua primeira batalha”.
Mas nisso o outro legionário já estava caindo sobre Dardan numa fúria tola, lançando a espada num golpe horizontal que visava cortar-lhe o pescoço. Desviar-se foi tão fácil quanto atingir o soldado no elmo, atordoando-o, e depois na nuca, matando-o. Tratou então do jovem ferido e desarmado, que não recebeu a misericórdia pela qual seus olhos haviam suplicado.
Dardan deu um rápido passar de olhos ao redor. A luta nas ameias não havia diminuído. Um oceano de lâminas vilmorianas inundava a cidade abaixo, mas os legionários não haviam afrouxado o ataque sobre as muralhas. Longas escadas e robustas torres de cerco os conduziam para cima, para onde os anglos mantinham sua brava e inútil resistência.
- Majestade! - chamou uma voz familiar. Era Cérdic, um dos capitães de Dardan.
- Fale - disse o rei.
- Temo que a cidade esteja perdida. Tomarão as ruas em pouco tempo, então subirão para cá e nos pegarão pelas costas.
Aquilo era óbvio. Dardan mandara cavar fossos e erguer barricadas no interior da cidade, mas isso agora se mostrava tão inútil quanto a própria resistência angla. Quase a totalidade dos homens se encontrava ali, nas ameias, e se Dardan ordenasse que descessem às barricadas nas ruas o inimigo tomaria as muralhas e também desceria, pegando-os por trás do mesmo jeito.
- Há alguma notícia de Elred? - perguntou o rei. Havia enviado Elred, seu melhor guerreiro, ao campo inimigo com toda a cavalaria da Ânglia. Sua missão não era fácil: destruir, ou ao menos enfraquecer, a vasta artilharia vilmoriana. Estava claro que havia falhado.
- Nenhuma notícia, meu senhor - respondeu Cérdic, dando uma nova bofetada na alma de Dardan. “Não, ele não”, pensou. “É apenas o transmissor das más notícias. São os deuses que me esbofeteiam. Os malditos deuses”.
À sua volta, o rugido da batalha não cessava. O topo de uma escada surgiu, encostado ao muro, poucos metros à esquerda de Dardan. Tão forte foi seu chute que o degrau mais alto se partiu em dois, enquanto a escada tombava de volta para cima dos vilmorianos.
- Faça soar a retirada - ordenou o rei a Cérdic - Nossa resistência final será no castelo.
O capitão não hesitou. Não tinha consigo o corno de guerra, mas correu para encontrar quem que estivesse com ele. Dardan, enquanto isso, mergulhava entre um vasto grupo de vilmorianos. Matou três antes que ao menos notassem sua presença. Atingiu a perna de um quarto, o pescoço de um quinto, a virilha de um sexto, fez com que um sétimo espetasse a lança na barriga de um oitavo. “Devia ter me rendido”, pensou enquanto matava. “De que adiantará resistir no castelo? Mas talvez... Talvez eles estejam vindo...”
Agora estava totalmente cercado. Quando o círculo se fechou sobre ele, porém, uma onda de anglos se chocou contra os legionários. Dardan dançou sua dança, girando e cortando, a dança dos quatro elementos. Quando acabou, dezenas de novos corpos vilmorianos jaziam ao seu redor. Os sobreviventes corriam, fugindo ao horror da derrota, enquanto uma leva de anglos erguia as armas e gritava em comemoração.
Por um instante, um mísero instante, pareceu até que a batalha havia sido ganha; mas então Dardan se lembrou de que havia luta ao longo de toda a extensão das muralhas. Nos outros pontos o combate continuava feroz. “Acabamos de atrasar um pouco mais a vitória de Vilmord”, pensou com amargura. Aquilo seria tudo o que conseguiriam: adiar o inevitável. “A não ser que Leóffen esteja vindo.”
Mas, olhando melhor os cadáveres à sua volta, o rei reparou que os mortos da Ânglia eram tão numerosos quanto os do inimigo. “Quanto mais teimo em resistir, mais sangue cobro de meu povo. Vale mesmo a pena derramar tanto sangue por uma vitória tão incerta?”
Foi nesse instante que o corno de guerra soou. Cérdic havia cumprido sua tarefa. Os guerreiros da Ânglia, bem treinados, abandonaram imediatamente a luta e correram na direção do castelo.
Antes de se virar para acompanhá-los, Dardan caminhou até a beirada da muralha. Foi então que notou o ferimento. Sua perna esquerda fora atingida por uma lâmina. Não parecia grande coisa, mas o sangue escorria a cada passo.
Dali de cima ele contemplou mais uma vez a vastidão do exército vilmoriano. Dezenas de milhares de homens, uma floresta de lanças e espadas. Canhões e torres de cerco, bestas e arcabuzes. Olhou mais para o norte, para a pequena colina de onde Ênor assistia à carnificina. “Vale mesmo a pena?”, a pergunta voltou a assombrá-lo. Mas então já tinha a resposta.


  


Capítulo IV

           Quando Fargost avistou a colina rodeada de vilmorianos e encimada por um estandarte, imaginou que encontraria ali os generais que comandavam o ataque.
           - É o rei! – foi Hassan quem percebeu.
           De fato era. Alto e forte como na última vez em que o anão o vira, porém bem mais velho. O cabelo havia se tornado grisalho e a pele enrugada, mas os músculos pareciam tão em forma quanto antes.
           Os homens que guardavam a colina eram knias, guerreiros de elite treinados especialmente para proteger a família real. Haviam notado a aproximação dos estranhos, por isso as lanças estavam inclinadas em posição defensiva.
           Ênor também os havia notado. Fargost fez um sinal para que seus homens parassem e prosseguiu sozinho.
           - Pare aí mesmo, anão! – gritou um besteiro de cima da colina, já pronto para enfiar um dardo na cabeça de Fargost – Quem é e o que quer?
           - Houve uma época em que um anão e um príncipe eram amigos – ele respondeu olhando direto nos olhos de Ênor – Ouvi dizer que esse príncipe agora é rei. Terá perdido o amor pelos velhos amigos ao colocar a coroa na cabeça?
           - Fargost? – o rei parecia incrédulo – É você, seu pequeno desgraçado?
           - Em carne e osso. Embora não tanta carne quanto você, seu brutamontes filho da mãe. A idade parece tê-lo deixado mais forte, em vez de abatê-lo!
           Ênor soltou uma rude e sonora gargalhada.
           - Deixem-no passar! – rosnou para os knias.
           Os guardas abriram caminho e o anão subiu a colina. Desceu do lombo de Tegg e fez uma profunda reverência diante do rei.
           - Mas que porra é essa? – disse Ênor – Você por acaso é meu súdito? – ergueu o anão como se fosse uma criança e lhe deu um abraço esmagadoramente apertado. O rosto do rei estava vermelho do esforço quando devolveu Fargost ao chão. – Pelos deuses! Ou você está gordo ou meus nervos estão enferrujados!
           - Ou as duas coisas – disse Fargost – Faz o que, trinta anos?
           - Vinte e nove.
           - Isso explica porque estamos velhos e gordos.
           Os dois riram. Foi então que o anão notou o jovem ao lado do rei. Era o próprio Ênor rejuvenescido umas três décadas. O mesmo rosto, o mesmo cabelo, a mesma barba. Era menos robusto, no entanto, e os olhos eram menos azuis.
           - Meu filho, Erik – apresentou Ênor.
           - É espantosamente idêntico ao pai. Lembro-me que você tinha apenas filhas na última vez que o vi. Os deuses enfim decidiram ser generosos e lhe dar um herdeiro?
           - Os deuses e meu pau – disse o rei.
           - É uma honra conhecê-lo, meu príncipe – Fargost fez uma nova reverência.
           - A honra é minha, senhor Fargost – respondeu Erik.
           - Em nome de Elbrus! – exclamou Ênor, pondo o anão em pé – Se você for se curvar perante cada homem nobre que encontrar, é melhor não visitar minha corte. Na idade em que está, sua coluna ficará tão fodida quanto as putas de Vílerath!
           - No Sul é costume um homem de baixo nascimento se curvar perante um senhor.
           - Em Vilmord você só se curva perante seu senhor.
           - Não estou em Vilmord, estou?
           Ênor riu outra vez.
           - Esse anão é um desgraçado – falou para Erik – Eu o adoro, mas é um desgraçado.
           - Você diz que não está em Vilmord, senhor Fargost – interveio o príncipe – Mas está pisando numa futura colônia vilmoriana. Sabe que cidade é esta?
           - Sei.
           Lundeburg era uma cidade grande, mas parecia pequena frente ao exército vilmoriano. Já não havia defensores nas ameias. Escadas, torres de cerco e uma enorme fenda na muralha ocidental davam acesso aos legionários, que invadiam a cidade como um enxame.
           - De fato, uma futura colônia vilmoriana – disse Fargost.
           - Eles ainda têm o castelo – falou Ênor.
           - Não por muito tempo – disse o príncipe.
           - Dardan é um homem teimoso – insistiu o rei – E o castelo de Lundeburg é tão forte quanto a cidade.
           - Mas o exército que o protege está fraco – retrucou Erik.
           Ênor apenas sorriu. Ele sabia que o filho tinha razão. Aquela batalha estava vencida.
           - Ouvi falar muito do rei Dardan – disse Fargost – O Dragão da Ânglia, alguns o chamam. Dizem que luta como um demônio.
           - Dizem muita coisa sobre ele – respondeu Ênor – Que é um síneo, que cospe fogo, que não pode ser morto, que trepa com deuses, que fez um pacto com elfos... A lista é imensa.
           - Também escutei sobre esse pacto com elfos. Será verdade?
           Ênor deu de ombros.
           - Se for, eu lhe garanto que os homens de Vilmord não têm medo de um bando de orelhudos afeminados que moram em árvores.
           Fargost sorriu.
           - Ouvi falar que os elfos de Zádia são guerreiros formidáveis.
           - Você dá crédito demais ao que ouve falar – respondeu o rei.
           - Talvez. Mas os elfos derrotaram aqueles monstros mecânicos de Farl.
           - Isso nós também fizemos – retrucou o príncipe.
           - Suas montanhas fizeram, você quer dizer.
           Aquilo não agradou o príncipe. Um rápido lampejo de ira passou por seu rosto.
           - Eu... – Fargost estava desconcertado – Eu não quis... O que eu quis dizer é que o deus das montanhas foi fundamental para sua vitória.
           Erik sorriu.
           - Está tudo bem, senhor Fargost – disse, dando um tapinha amigável nas costas do anão – Você não falou nada que não fosse verdade.
           Realmente não. Se não fosse pela proteção de Elbrus, deus das montanhas, o reino de Vilmord teria sido trucidado pelas criaturas mecânicas de Farl. Aquela era uma história antiga e, para alguns, de veracidade duvidosa; mas Fargost vira os monstros de Farl com seus próprios olhos. “Nenhum homem pode esperar vencer essas coisas”, pensara quando os vira. Sua opinião não havia mudado.
           - Há quem diga que a ajuda do deus-sol foi igualmente fundamental – quem falou foi um jovem ruivo, de olhos azuis como os de Ênor, mas nada parecido com ele.
           - Conheça Helgar Ralfson, enteado de minha irmã – apresentou Ênor.
           - Também tem a cara do pai – disse Fargost, como se lembrasse do rosto de Ralf, cunhado de Ênor. Na verdade o anão mal trocara duas palavras com o homem em toda sua vida, mas sentia necessidade de ser cortês. Fora educado para isso; educado para bajular senhores e reis.
           Helgar abriu a boca para responder, mas foi interrompido pela voz de um knia.
           - Sua Graça – chamou o guarda – O general Lars pede para lhe falar.
           O rei assentiu. Os knias deram passagem e o general subiu a colina. Fez uma reverência, mas não desceu do cavalo.
           - Majestade – sua voz era estranhamente fina, mais condizente com uma donzela do que com um comandante de exércitos – Dardan recuou para o castelo.
           - É claro que recuou – disse o rei – Então o que vai ser? Mataremos os anglos de fome ou atacaremos com tudo e deixaremos o castelo tão ensanguentado quanto a cidade?
           - Atacaremos – respondeu o general em sua voz afeminada – Os homens anseiam pela vitória.
           - Pela vitória e por cortar mais alguns anglos – tornou o rei – Há alguma notícia de Kert ou de Chevaliôn?
           - Ainda não, Sua Graça. Deve estar tudo correndo como planejado.
           - Deve estar – concordou Ênor – Muito bem, general. É chegada a hora do último golpe. Ataquem com força.
           O general assentiu.
           - Que Militus continue a nos favorecer – disse, depois se virou para descer a colina.
           Militus, deus da guerra, era conhecido por sua inconstância, mas não parecia a Fargost que os anglos tinham qualquer chance de vitória.
           - Chame seus homens – disse enfim Ênor – Vocês irão conosco à cidade.
           Quando Fargost voltou para junto dos seus e deu a notícia, Ahmed pareceu desconfiado.
           - E o que faremos lá? – perguntou.
           - Assistiremos – respondeu o anão – Assistiremos à queda da Ânglia.
 




Capítulo V

           - Vamos nos render – anunciou Dardan. Esperava que isso causasse um pequeno rebuliço, mas ninguém no salão ao menos abriu a boca. “Já esperavam por isso”, percebeu. “Ansiavam por isso.”
           Os muros do castelo eram tão altos e espessos quanto os da cidade e requeriam menos homens para defendê-los. Fyrwulf, um dos capitães de Dardan, havia sugerido no primeiro dia de cerco que deixassem a cidade para os vilmorianos e recuassem todos para o castelo.
           - Ele é grande o bastante para abrigar toda a população e todas as suas provisões – argumentara o capitão – Com a vantagem de que é mais fácil de ser defendido.
           Aquilo era verdade, até certo ponto. O povo da Ânglia teria passado por uma existência miserável naqueles cinco dias, apinhado em salões e corredores, talvez em meio a animais e montes de excremento. Se o cerco se prolongasse, doenças começariam a surgir. Das ameias do castelo os guerreiros da Ânglia veriam suas casas sendo saqueadas e passadas na tocha. As pedras das muralhas seriam pouco a pouco arrancadas e moldadas, para serem usadas como as balas de canhão que derrubariam os muros do castelo.
           “E agora tudo isso acontecerá, a não ser que nos rendamos.”
           O Grande Salão do castelo de Lundeburg estava lotado com guerreiros, clérigos, nobres e todos os capitães. Entre eles não se encontrava Fyrwulf, que morrera no terceiro dia de batalha, empalado por uma lança vilmoriana.
           - Meu senhor – disse Rameth, grão-clérigo da Ânglia – Alguma palavra dos elfos?
           “Leóffen. Ele me prometeu...”
           - Os elfos não interferem em guerras humanas – respondeu o rei. Sabia que seria aquilo que Leóffen teria escutado de seu tio, o ancião.
           - Mas deveriam! – rosnou o velho e carrancudo senhor Ethelwulf – Eles têm uma dívida para conosco!
           - Porque matamos dois anões? – ironizou Dardan.
           - Dois farlianos! Dois inimigos de Zádia!
           O ódio entre os anões de Farl e os elfos de Zádia era quase tão antigo quanto a fundação do reino anglo. Dizia-se que os farlianos montavam imensas criaturas de ferro que exalavam fumaça e cuspiam enxames de balas de arcabuz. Haviam quase destruído Vilmord uma vez, mas o deus das montanhas interferira, esmagando os anões e suas criaturas sob uma cascata de rochas.
           - Perdemos uma dúzia dos nossos naquele ataque! – continuou Ethelwulf.
           - Nove – corrigiu Dardan – Perdemos nove. E os elfos nunca pediram que os atacássemos.
           - Um favor também gera uma dívida – teimou o velho senhor.
           - Se gera uma dívida, não é um favor – respondeu o rei com paciência – E foi um favor inútil, de qualquer forma.
           Não devia ter dito aquilo. Ethelwulf recebeu como uma ofensa. Seu primo, Alfric de Rodsburg, emboscara os dois farlianos na fronteira de suas terras, certamente visando um estreitamento de laços com os elfos ou alguma gratificação por parte do rei. Não recebeu nem uma coisa nem outra. O próprio Alfric foi um dos nove mortos no ataque, então coube ao seu filho, Aldrad, receber o ouro dos elfos, que foi mais uma compensação pelas perdas do que uma gratificação. O conflito maior ocorreu quando Aldrad se recusou a lhes entregar as estranhas armas dos farlianos. A interferência de Dardan resolveu o problema, mas não sem causar algum mal-estar.
           Embora cheio de ira, Ethelwulf se manteve calado durante o resto da audiência. O grão-clérigo Rameth fez uma prece fervorosa ao deus-sol, exaltando-o e pedindo sua proteção. O capitão Ricsig apresentou argumentos contra a rendição e planos para a defesa do castelo, mas ninguém lhe deu muita atenção. Os senhores e senhoras da Ânglia questionaram o rei sobre o destino de suas famílias.
           - Ninguém será morto – prometeu Dardan – Não enquanto se mantiverem submissos a Vilmord.
           - Mas os desgraçados exigirão reféns – falou Arnold de Glesterburg.
           - Exigirão – Dardan não via motivos para mentir.
           Depois da audiência o rei fez uma visita demorada às ameias. O ferimento na perna agora estava ardendo. Os médicos do castelo tinham feito um bom trabalho, mas recomendaram repouso absoluto, o que Dardan não cumpriu.
Ali nas ameias as sentinelas estavam por toda parte. Orgulhosos guerreiros da Ânglia que agora teriam que dobrar o joelho e viver sob as regras de um invasor. Altos impostos, servidão, proibição de pegar em armas. Dardan conhecia o jeito vilmoriano de governar.
O castelo de Lundeburg ficava bem no centro da cidade, no topo de uma imensa colina. Se os generais de Vilmord optassem por assaltar os muros como haviam feito com a cidade, perderiam centenas de seus legionários só na subida. “Mas no fim tomariam o castelo e nos passariam na espada”, Dardan sabia. Todos conheciam a história sobre a queda de Áskar, o reino que Vilmord levara quase uma década para conquistar. A última batalha se dera na capital, onde os askarianos lutaram com tal fervor que mais de dez mil vilmorianos tombaram. Mesmo assim a cidade foi tomada; e como retaliação os legionários mataram toda a população.
“Tanto sangue para nada”, pensou Dardan, observando os milhares de corpos que se espalhavam pelas ameias de sua cidade. Legionários passavam por cima deles, hordas e mais hordas, marchando na direção do castelo. Um círculo de lanças e espadas começava a se formar ao redor da colina. “Vão atacar”, percebeu o rei. “Eles têm pressa de nos matar.”
Não havia tempo a perder. Dardan tinha que ir imediatamente aos vilmorianos, carregando a bandeira de trégua, para anunciar sua rendição. Desceu ao Grande Salão a fim de encontrar o capitão Cérdic, mas no caminho passou por seu quarto, onde Ariel, sua esposa, chorava ao lado do leito do filho. O grão-clérigo Rameth tentava acalmá-la.
           - É só uma febre, minha senhora. Ele já passou por várias. Vai ficar bem.
O príncipe Edmund, filho caçula de Dardan, desobedecera ao pai e chegara perto demais da batalha, sendo recompensado com um tiro de arcabuz vilmoriano. A bala fora extraída e, segundo os médicos, atingira apenas os ossos da costela, não comprometendo nenhum órgão vital. Mas o pequeno príncipe não mostrava sinais de melhora.
           - Ele está consciente? - perguntou Dardan.
           - Não - respondeu o grão-clérigo.
           - Meu filho está morrendo - o sofrimento na voz de Ariel era um golpe cruel no coração de Dardan.
           - Confie em Hózus, minha senhora - pediu o grão-clérigo - O deus-sol sabe o que faz. Venha, me dê sua mão - ele olhou para o rei - Acompanha-nos numa oração, Majestade?
           Dardan assentiu. As orações de Rameth costumavam ser longas, mas daquela vez ele foi breve, pedindo ao deus-sol que desse forças ao jovem príncipe e a sua mãe. Ariel pareceu se acalmar, mas Dardan tinha o coração pesado quando deixou o quarto. No piso térreo do castelo, numa sala escondida de olhos curiosos, encontrou seu altar particular. Ali se ajoelhou e orou a seus próprios deuses: Vlamus, senhor do fogo; Naahi, deusa das águas; Raiza, deusa da terra; e Solphos, regente do céu e dos ventos. E por último orou a Namnel, a Mãe.
Encontrou o capitão Cérdic no Grande Salão como esperava. Era um homem resoluto e obstinado como poucos, mas a perspectiva da derrota o deixara tão abatido quanto os demais.
- Capitão, traga-me a bandeira – ordenou o rei – E reúna uma escolta. Não mais que uma vintena de homens.
- Sim, Majestade – respondeu Cérdic, então saiu para cumprir seu dever. Porém, no momento em que retornava com a bandeira de trégua e a escolta, um arqueiro desceu correndo as escadas.
- Majestade! - gritava ele, quase sem fôlego - Senhor! Eles vieram! Os elfos! Os elfos vieram!
“Leóffen!”, pensou Dardan. Sem hesitar, subiu correndo as escadas. Senhores, capitães e guerreiros foram atrás. Quando chegaram às ameias, encontraram os vigias olhando incrédulos para as muralhas da cidade, como se um milagre estivesse ocorrendo lá.
E, de fato, estava.




Capítulo VI

           Estavam dentro da cidade, se dirigindo ao castelo de Lundeburg, quando ouviram os gritos. Por um momento, Erik pensou que fossem os capitães colocando seus legionários em ordem, mas logo ficou claro que era um ataque. De onde estavam não podiam ver muita coisa, mas os sons indicavam que homens estavam morrendo nas ameias.
           Cavaleiros passaram a galope por eles. Eram os generais. Dirigiram-se à muralha, mas no meio do caminho pararam e deram meia-volta. Homens subiam correndo as escadas que levavam às ameias. Erik viu um legionário despencar lá de cima, com uma única flecha cravada no peito.
           - Elfos! – gritou um dos generais, passando outra vez a galope por eles – São os malditos elfos!
           Erik sentiu um arrepio subir por sua espinha. Por maior que fosse o desdém que seu pai tinha pelos elfos, ele sabia que tal sentimento era fruto da ignorância. O rei tinha pouco conhecimento sobre aquelas criaturas, assim como a maior parte dos homens. As histórias os descreviam ora como seres frágeis e afeminados, ora como criaturas macabras dotadas de poderes terríveis. Mas Erik certa vez falara com um síneo, um homem que não tinha motivos para inventar histórias e que conhecera bem os elfos; bem o bastante para temê-los.
           - Cada elfo é um síneo – dissera o homem – Mas, diferente de nós, eles não têm deuses para manipulá-los. Há uma divindade, a Mãe, mas ela não os controla como nossos deuses fazem.
           Agora os gritos eram mais frequentes. Ainda não dava para ver exatamente o que se passava nas ameias, mas homens corriam e tombavam, gritavam e morriam. Grandes pedaços da muralha, blocos inteiros de pedra maciça, voaram pelo ar a uma altura inacreditável, como que arremessados pela força de uma artilharia monstruosa, mas não houvera o prenúncio de um disparo de canhão. Talvez fossem catapultas, mas nenhuma catapulta que Erik conhecesse poderia ter feito aquilo. Junto com os blocos voaram dezenas de legionários, para em seguida despencar como pacotes de ferro sobre as ruas da cidade.
           Um dos blocos caiu a não mais que trinta passos do rei, por pouco não esmagando a primeira fileira de guardas reais.
           - Para trás! – gritou Ulfric, comandante dos knias – Temos que nos afastar, Majestade – acrescentou para o rei.
           Ênor apenas assentiu. Seu rosto não demonstrava qualquer emoção. Se estava temeroso como o filho, sabia disfarçar bem.
           Foram mais para o interior da cidade, o que os deixava longe das muralhas, mas mais perto da alta colina coroada pelo castelo. Dardan poderia liderar um ataque de lá, visando matar ou capturar o rei inimigo, mas se fizesse isso levaria um bom tempo para descer a colina. A comitiva de Ênor levaria menos tempo para voltar à segurança junto das legiões. “Segurança contra espadas”, pensou Erik. “Não contra blocos de pedra que caem do céu.”
           O rosto do rei continuava inexpressivo como uma rocha. Ródrion estava tenso. Helgar tentava inutilmente disfarçar o nervosismo. O anão Fargost parecia preocupado, enquanto seus cinquenta sulistas tinham o medo estampado nos rostos.
           A visão das ameias era bem melhor ali. Flechas estavam caindo sobre os legionários, mas parecia a Erik que elas brilhavam num estranho tom azul enquanto cruzavam o ar. Pedras e legionários voaram outra vez. Um incêndio surgiu de repente e começou a se espalhar depressa.
           Todas as tropas vilmorianas que ocupavam a cidade correram para as ameias ou para a fenda na muralha ocidental, indo enfrentar os elfos na planície gramada. Não havia mais blocos de pedra voando nem flechas caindo sobre os muros, mas o incêndio avançava como se houvesse palha seca espalhada pelo chão.
           - Magia negra – murmurou o comandante Ulfric, tocando um amuleto em forma de sol que usava no pescoço – Que os deuses nos salvem.
           O rei o olhou com desgosto. Ênor não tinha nada contra homens religiosos, Erik sabia, mas desprezava o medo acima de tudo.
           - Os deuses pouco se importam conosco – disse o rei.
           - O deus-sol se importa – teimou Ulfric.
           - O deus-sol caga em cima dos homens e limpa o cu com suas barbas – respondeu Ênor com selvageria. Ulfric se encolheu. Era um bom homem, leal até os ossos, mas às vezes parecia mais um clérigo do que um soldado.
           Não demorou para que as ameias estivessem perdidas para os vilmorianos, totalmente tomadas pelas chamas. Os legionários que não conseguiram chegar às escadas pularam para a morte ou foram queimados. Pelo menos por um momento, Lundeburg era quase uma cidade livre outra vez. As legiões de Vilmord estavam do lado de fora, combatendo os elfos, de modo que os únicos vilmorianos ali dentro eram os da comitiva do rei. Mesmo enfraquecido, o exército de Dardan era muito maior que a comitiva, mas quando Erik olhou para trás, para o castelo sobre a colina, não viu qualquer sinal de homens lançando um ataque.
           - Vamos – disse o rei de repente. Ulfric o olhou confuso. – Vamos para fora – explicou Ênor – Quero ver a luta.
           Ulfric pareceu apavorado com a ideia de chegar perto dos elfos, o que enojou Ênor.
           - Vamos para fora! – ordenou o rei aos knias, como se Ulfric não estivesse ali para fazer isso. Alguns dos guardas pareciam tão assustados quanto seu comandante, mas ninguém hesitou em obedecer.
           Erik olhou para os sulistas de Fargost. Dois deles, um alto e esguio e o outro robusto como Ênor, conversavam com o anão. Falavam em sua língua nativa, provavelmente jínada, portanto Erik não entendia uma palavra. O medo, no entanto, era tão visível em seus olhos quanto no tom de suas vozes.
           Fargost se aproximou do rei.
           - Gostaria de acompanhá-lo, meu amigo – disse o anão – Mas não posso arriscar as vidas de meus homens.
           Ênor assentiu.
           - Vá para Haltsberg – respondeu – Irei encontrá-lo quando tiver acabado aqui.
           - Haltsberg – repetiu o anão, deixando claro que não sabia onde ficava o lugar.
           - É uma cidadezinha perto de Söderberg – explicou o rei, depois olhou para Ródrion – Meu sobrinho a conhece. Ele será seu guia.
           Ródrion se remexeu na sela, assustado com a súbita missão.
           - Si... Sim, senhor – gaguejou o jovem primo de Erik.
           Ênor não gostava de Ródrion. Sempre deixara isso claro. Seu pai fora um traidor, um diplomata que fora pego entregando segredos de Vilmord à nobreza sulista. Para Erik isso não fazia de Ródrion um traidor também, mas essa não parecia ser a opinião do rei. Ainda assim, dera uma tarefa ao sobrinho, provavelmente para vê-lo pelas costas; mas talvez fosse um teste.
           Já estavam bem perto da brecha na muralha ocidental quando um dos knias deu o grito de alarme.
           - Anglos! Às nossas costas!
           O medo voltou a assombrar o príncipe. Pensou que ao se virar veria uma horda de anglos correndo pelas ruas, saindo de trás das casas abandonadas, mas não havia ninguém. Ao longe, porém, um exército descia a alta colina. Dardan estava lançando seu ataque. Jamais alcançaria a comitiva de Ênor a tempo, mas Erik duvidava de que essa fosse sua intenção. “Ele vai reforçar o ataque dos elfos. Vai atacar nossa retaguarda. Tolo. Abandonará a segurança de seu castelo para ser trucidado em campo aberto.”
           No entanto, quando atravessaram as muralhas e pisaram na planície gramada, a espinha de Erik gelou outra vez. Não havia possibilidade de vitória. Não para os vilmorianos.





Capítulo VII

Flechas caíam sobre aço. Flechas estranhas, cujas pontas brilhavam num tom azul-esverdeado. As armaduras de Vilmord eram feitas com o melhor aço de Nordgard, mas se estilhaçavam como porcelana ao mero toque daquelas flechas.
Eiglaf, general vilmoriano e veterano de incontáveis batalhas, nunca vira algo como aquilo. Quando os elfos chegaram, havia bem mais de vinte mil legionários vivos. Agora deviam ser menos de quinze mil. Os elfos não eram mais que duzentos.
“Como é que os deuses permitem?” perguntou-se Eiglaf, olhando indignado para o amuleto em forma de sol no pescoço de um legionário morto. O pobre homem fora pego por uma daquelas coisas que os elfos conjuravam. Pareciam raízes cobertas de espinhos. Surgiam do meio da terra e da grama, agarravam os homens e os torciam, quebrando armadura e ossos.
Elas haviam sido usadas primeiro contra os besteiros e arcabuzeiros. Estes disparavam inutilmente, tentando acertar os elfos, que simplesmente se cobriram com escudos que pareciam frágeis, feitos de um vidro esverdeado, mas não cediam perante balas ou dardos. Então as raízes vieram e dezenas de atiradores foram torcidos, mas os demais guardaram os arcabuzes e bestas e puxaram as espadas. Homens com machados correram em seu auxílio. As raízes não eram assim tão numerosas, de modo que aquela luta teria sido facilmente ganha, mas de alguma forma ninguém notou o incêndio. Era um fogo com vida própria, como aquele que havia tomado as ameias ocidentais da cidade. Se alastrou ao redor dos atiradores, prendendo-os num círculo, para depois se fechar como um laço e inundá-los num mar de chamas. Agora todos aqueles corpos estavam carbonizados.
Depois disso, os vilmorianos tentaram usar seus canhões para esmagar os elfos, mas, por puro azar ou por obra da magia élfica, nenhum projétil acertou o alvo. Então a terra tremeu. Timidamente no início, depois mais forte, até que o solo cedeu e se abriu num abismo que engoliu toda a artilharia vilmoriana. A maioria dos homens se salvou, mas não houve tempo para empurrar os canhões.
Tudo isso se dera numa questão de minutos. Agora os elfos estavam cercados por uma massa de legionários, homens de lança, espada e machado que tentavam vencer pelos números. Porém os elfos também tinham espadas. Eram curvadas como as lâminas dos sulistas. Emitiam o mesmo brilho azul-esverdeado das flechas e, como elas, cortavam aço, carne e ossos como se tudo fosse feito de queijo.
A luta se desenrolava a oeste da cidade, distante de onde Eiglaf estava. De vez em quando o general enviava batedores para ver a coisa mais de perto. A maioria retornava. Dois ou três disseram achar ter visto elfos mortos.
- Uns cinco, eu acho - dissera um deles - Estavam caídos. Parecia haver sangue sobre eles.
Então talvez, se os deuses fossem bons, cinco elfos haviam morrido, enquanto dez mil vilmorianos jaziam estirados sobre a grama.
- Gulthur! - chamou o general. Seu trêmulo assistente, o jovem Gulthur, apareceu ao seu lado. Ainda estava em choque devido a uma flecha élfica que passara zunindo a centímetros de seu rosto, para se cravar num legionário que cavalgava metros atrás. - Chame os outros generais - ordenou Eiglaf ao rapaz - Traga-os a mim.
Pela expressão de seu rosto, Gulthur pareceu ter se borrado todo ao receber aquela tarefa. Era patético. Não parecia, a julgar por seu físico atlético, mas por dentro era frágil como uma mocinha.
- O rei! - gritou alguém - O rei está aqui!
Ao ouvir aquilo, Eiglaf pensou que Ênor estava logo às suas costas, mas ao se virar viu que a comitiva real estava longe, passando pela fenda na muralha ocidental da cidade.
- Traga os generais! - ordenou novamente ao pálido Gulthur, depois se afastou a galope, deixando o rapaz gaguejando sozinho.
Enquanto cavalgava na direção do rei, seguido por seus guardas e serviçais, Eiglaf olhava os corpos espalhados pela planície. Eram mortos demais. Corajosos guerreiros de Vilmord, homens que haviam dado suas vidas pela glória do país; sacrifício este que agora fora tornado inútil pela magia dos elfos. “Não é justo. Não devia existir um poder assim”.
Os knias tinham as lanças inclinadas quando o grupo de Eiglaf se aproximou, mas relaxaram quando viram quem era. A um comando de Ênor, deram passagem e o general foi para junto do rei.
- Majestade, não podemos vencer - disse Eiglaf sem rodeios - Eles destruíram nossa artilharia e mataram quase todos os atiradores. O restante das tropas não está se saindo melhor.
O general esperou uma resposta, mas ela não veio. Com o rosto totalmente desprovido de emoções, Ênor simplesmente olhou para os cadáveres espalhados, para o buraco que engolira os canhões, para o incêndio que ainda consumia os corpos dos atiradores e, enfim, para a luta a oeste.
- Aniquilaram um quarto de nossas tropas em meia hora! - continuou Eiglaf - Temos que nos retirar. Não podemos lutar contra isso.
Silêncio outra vez. O rosto de Ênor ainda não traía qualquer sentimento, ao contrário de seus companheiros. Os olhos do príncipe Erik estavam quase tão arregalados quanto os do comandante dos knias.
Os generais não precisavam do consentimento do rei para fazer soar a retirada. As legiões obedeciam apenas a eles e eles ao Conselho. Mas Eiglaf queria se certificar de que Ênor compreendesse a situação.
- Quantos eles são? - perguntou enfim o rei.
- Cerca de duzentos - respondeu Eiglaf.
- E quantos morreram?
- Cinco, na melhor das hipóteses.
Alguém na comitiva real soltou um suspiro de espanto. E nesse instante a trombeta soou. O exército vilmoriano estava em retirada.
Todos os olhos da comitiva se voltaram para o oeste, onde os legionários davam as costas à luta e corriam na direção da colina onde tremulava o estandarte vilmoriano. Não era uma retirada organizada; parecia mais uma fuga desesperada. Os elfos deveriam aproveitar a oportunidade e fazer chover flechas sobre o inimigo desprotegido, mas, estranhamente, não faziam nada. Nem mesmo comemoravam.
Eiglaf ouviu cascos se aproximando. Eram os outros quatro generais. Torik, Gelthred, Ragnus e o afeminado Lars. Vinham todos montados, acompanhados por suas escoltas. Junto deles vinha Gulthur, tão pálido e trêmulo quanto antes. “Pelo menos cumpriu sua tarefa”, pensou Eiglaf.
Durante um bom tempo ninguém falou. Foi o alerta de um knia que rompeu o silêncio:
- Senhor! Os anglos estão muito perto!
Ele falava com Ulfric, seu comandante, mas este parecia apavorado demais para responder. Dentro da cidade, parados na rua principal, estavam os guerreiros da Ânglia. O próprio Dardan os liderava. Tinha as vestes rubras com sangue vilmoriano e, nas mãos, os machados prontos para matar mais, mas a perna esquerda parecia ferida.
- Eles querem nos matar - falou Ênor, os olhos fixos no rei rival - Querem nos trucidar como fizemos com eles.
O exército da Ânglia, mesmo reduzido após os cinco dias de cerco, ainda era esmagadoramente mais numeroso que a comitiva de Ênor. A única coisa sensata a fazer era correr para junto dos legionários na colina, mas Ênor, em vez de dar essa ordem, simplesmente ficou encarando Dardan. Eiglaf mais uma vez ouviu o som de cascos batendo contra terra e grama. Seus companheiros generais, com os respectivos séquitos, estavam galopando para longe dali. Eiglaf logo percebeu o porquê: os anglos estavam avançando.
- Majestade! chamou o comandante Ulfric. Ênor não se mexeu.
- Pai! - tentou o príncipe, mas também foi ignorado. Ergueu o braço para tocar o ombro do rei, mas este o empurrou com tamanha violência que Erik se desequilibrou na sela. Teria caído se seu primo, o tal Ródrion, não o tivesse segurado.
Eiglaf se preparava para seguir o exemplo dos outros generais quando ouviu o som de aço raspando em couro. Ênor havia desembainhado Dente de Dragão, a antiga espada de sua Casa. Era uma arma comprida e pesada. Mesmo um homem forte como o rei precisava de ambas as mãos para brandi-la. Eiglaf viu o brilho que emanava das runas inscritas na lâmina. Aquele era um feitiço antigo, posto na espada pelo próprio deus das montanhas. Poderia alguém ter chances contra a magia de um deus?
- Saiam da frente - ordenou Ênor num tom gélido, ainda sem tirar os olhos de Dardan. Os knias imediatamente abriram caminho.
- Pai! - chamou outra vez o príncipe, mas o rei já estava cavalgando em frente. Ninguém o seguiu. Ele não queria ser seguido. Galopou até estar na metade do caminho entre sua comitiva e o exército da Ânglia. Ali parou, sozinho, espada em mãos, esperando que um anglo aceitasse seu desafio.
Os homens da Ânglia também pararam. Um vento gelado soprou vindo do sul, agitando a longa trança negra de Dardan. Ao seu lado estava um guerreiro imenso, tão robusto quanto Ênor e bem mais alto que ele. O homem também portava uma espada longa de duas mãos. Eiglaf pensou que seria aquele brutamontes o oponente de Ênor, mas em vez disso ele entregou a espada a Dardan.
O príncipe Erik resmungou alguma coisa que Eiglaf não pode entender. Um pouco atrás, Gulthur estava vomitando. O vento frio ainda soprava. A oeste, na planície e na colina, elfos e legionários olhavam para a cidade.
Onde dois reis estavam prestes a se enfrentar.





Capítulo VIII

A perna estava doendo demais. Cada passo seria um martírio, caso Dardan não fosse um homem treinado pela Ordem dos Quatro Elementos. Ele aprendera a suportar a dor; não com o corpo, mas com a mente.
- Muito se fala sobre Dardan, o Dragão da Ânglia - disse Ênor quando ele se aproximou - O maior guerreiro do Norte, alguns dizem. Eu gostaria muito de testar a veracidade disso. Mas não estou afim de  lutar com um aleijado.
Ênor dissera a última frase sorrindo. Ainda estava sentado sobre a sela do garanhão, cujo corpo se encontrava quase tão blindado quanto o dele.
- E eu não estou afim de lutar com um velho - respondeu Dardan.
Aquilo fez desaparecer o sorriso de Ênor. Ficou sério durante algum tempo, mas de repente gargalhou. Por meio minuto ou mais ele gargalhou. Por fim desceu da sela e deu um forte tapa na anca do cavalo, que voltou trotando para junto da comitiva vilmoriana.
Os oponentes se encararam. Dois reis, dois homens do Norte. Ênor coberto de aço e usando um elmo aberto no lugar da coroa, enquanto Dardan vestia couro sob o kimono e não tinha nada sobre a cabeça. Havia entregado seus machados a Beorcsith, seu melhor guerreiro depois do desaparecido Elred. Seria Fúria de Witanburg, a espada de Beorcsith, que enfrentaria a Dente de Dragão de Ênor. Dardan tinha muito mais habilidade com os machados, mas com a perna naquele estado não poderia se mover tão rápido quanto gostaria, o que o deixaria vulnerável ao longo alcance da espada de duas mãos. Sua melhor chance era combater força com força.
- Então que seja - disse Ênor - Um velho enfrentará um aleijado.
- Não sou um... - começou Dardan. “Aleijado”, ia dizer, mas o golpe de Ênor não permitiu.
A lâmina veio depressa, o brilho das runas desenhando um arco luminoso no ar. Dardan se surpreendeu com a velocidade. Quando as espadas se chocaram, a força de Ênor quase fez o anglo largar sua arma. Ele sabia que seus músculos não eram páreos para os do rei de Vilmord, portanto, ao invés de empurrar a espada de Ênor com a sua para abrir-lhe a guarda, deu um passo atrás e deixou que Dente de Dragão concluísse seu giro. A ponta de mithril passou a centímetros do pescoço de Dardan, como ele pretendia, e no mesmo instante Fúria de Witanburg subiu para encontrar os pulsos de Ênor.
Mas o rei de Vilmord era ágil e tinha bons reflexos. Saltou para trás a tempo de evitar o golpe. Atacou novamente. Dardan aparou. Tentou contra-atacar, mas a lâmina de Ênor já estava vindo outra vez. O vilmoriano ofegava enquanto girava a espada de novo e de novo, em golpes rápidos e sucessivos que empurravam Dardan cada vez mais para trás, na direção de seus compatriotas anglos.
Ênor continuava ofegando. Começou a suar. “Está velho”, pensou Dardan. “Posso vencê-lo pelo cansaço”. Mas gritos de alarme vieram do lado anglo. A princípio Dardan não pode identificar as palavras, até que ouviu claramente “a pedra!”. Então soube porque Ênor o estava empurrando para trás. Na investida seguinte, em vez de aparar o golpe, o rei da Ânglia saltou de lado, evitando-o, e viu de relance a pedra que o teria feito tropeçar. Porém, assim que seus pés tocaram o solo, a perna esquerda latejou. Uma pequena quantia de sangue esguichou do ferimento, que provavelmente fora aberto outra vez. A dor quase o fez cair de joelhos.
Ênor voltou a atacar. Dardan recebeu o golpe na lâmina, mas ao mesmo tempo girou para direita, trazendo sua espada de volta ao mesmo tempo em que empurrava a de Ênor para longe. A perna esquerda explodia de dor, mas isso não importava. Ao concluir seu giro, Dardan atingiu Ênor na altura das costelas. Ficou desapontado ao ver que o golpe não fizera mais que um arranhão na armadura de placa.
O rei de Vilmord investiu outra vez. Lançou uma nova carga de golpes velozes. Estava suando cada vez mais. Dardan não suava; nem mesmo se sentia cansado, mas a perna estava em agonia. Ênor o estava empurrando de novo. Talvez houvesse outra pedra, mas ele não tinha tempo de olhar.
O vilmoriano sabia que estava em vantagem. Já não se preocupava com sua guarda; apenas fazia descer mithril sobre Dardan de todos os ângulos. Fúria de Witanburg, forjada em aço comum, devia estar cheia de mossas, enquanto Dente de Dragão se mantinha intacta. Mas então Dardan, num movimento inesperado, se abaixou, evitando o golpe seguinte. Aquilo lhe custou um novo esguicho de sangue e uma nova pontada de dor. Porém, enquanto a espada de Ênor passava veloz acima de sua cabeça, ele mandou a ponta de Fúria de Witanburg contra o abdômen do vilmoriano. Dardan ouviu gritos de júbilo vindo do lado anglo, enquanto Ênor cambaleava três passos para trás. Uma pequena fenda fora aberta em sua armadura cara. Sangue escorria de lá.
Dardan não hesitou. Agora era sua vez de atacar. Lançou um golpe baixo, visando acertar as pernas de Ênor, mas este aparou a investida. Dardan girou, como havia feito antes, empurrando a lâmina de Ênor para longe; mas o vilmoriano também empurrou, com muito mais força. O rei da Ânglia sentiu o cabo de Fúria de Witanburg saltar de suas mãos, conforme a espada voava para longe de seu alcance. Caiu a metros de distância.
Ênor sorriu. Seu oponente estava desarmado, ferido e começando a se cansar. Dardan pensou em se virar rapidamente e correr para alcançar a espada caída, mas Ênor atacou. Dardan se esquivou desse primeiro golpe, e do segundo, mas no terceiro sua perna latejou outra vez. Conseguiu evitar a lâmina, mas a dor o fez cair sentado. Rugindo, Ênor desceu a espada num golpe que poderia cortar um crânio ao meio, mas atingiu apenas a grama. Dardan havia rolado como uma bola, indo para a direita, evitando o golpe e esticando a perna boa para dar uma rasteira em Ênor. Funcionou. O rei de Vilmord caiu de costas, pesado com todo aquele aço. Os anglos vibraram outra vez.
Mas Dardan demorou para se levantar. Era um homem leve e ágil, mas o ferimento aberto, do qual escorria um pouco mais de sangue a cada novo esforço, tornava tudo muito mais difícil. Gemendo, o rei da Ânglia conseguiu se pôr em pé. E viu que Ênor também havia se levantado.
Dardan saltou para trás, colocando-se longe do alcance de Dente de Dragão. Conseguiu cair com todo o peso apoiado na perna boa. Pensou em esperar Ênor vir, desviar de sua lâmina e acertar-lhe um chute na cara, o que possivelmente o faria cair outra vez, além de divertir muito a plateia angla. Mas de nada adiantaria. Dardan provavelmente cairia também por causa da perna; e, mesmo que isso não ocorresse, não podia esperar vencer um homem tão blindado usando apenas os punhos. Não estava lutando com um dos monges de sua Ordem. Pensou em correr ao redor de Ênor e alcançar Fúria de Witanburg, mas com aquela perna não conseguiria ir longe. O vilmoriano, mesmo com toda a armadura, o alcançaria antes.
Não; só havia uma coisa a fazer. Dardan correu. Não ao redor, mas na direção de Ênor. Este se mostrou surpreso, mas a surpresa não o impediu de atacar. O golpe veio baixo, então o rei da Ânglia saltou por cima. Viu o brilho das runas passar a poucos centímetros de seus pés. Tocou o solo com a perna boa, saltou novamente, rolou na terra e voltou a correr. Quando alcançou Fúria de Witanburg, virou-se rapidamente para aparar o golpe de Ênor.
Mas não havia golpe. O vilmoriano não tinha saído do lugar. Ofegante, coberto de suor, olhava quase pasmo para Dardan. Certamente nunca vira um homem lutar daquela forma, saltando e rolando como um pantomimeiro.
Todo aquele movimento, porém, havia cobrado seu preço. Dardan estava agachado quando virara, e agora não conseguia se levantar. Teria que lutar com um dos joelhos no chão.
Ênor veio. Sem gritar, sem correr. Apenas caminhou em frente para matar o rei inimigo. Dardan permaneceu em guarda, como se fosse aparar o golpe, mas quando a lâmina desceu ele rolou outra vez como uma bola, agora para a esquerda. Escapou por uma fração de segundo. Golpeou com Fúria de Witanburg enquanto Ênor ainda erguia sua arma para o segundo golpe.
Sangue jorrou. Ênor fora atingido na perna. A lâmina de Fúria rompera a greva de aço, deixando o rei de Vilmord ajoelhado como seu oponente. Dardan não parou para pensar. Girou Fúria de Witanburg para cima. Viu Dente de Dragão vindo, mas esta parou no meio do caminho. Parou e caiu.
Ênor também havia caído. Estava gorgolejando enquanto o sangue escorria de sua garganta arruinada. O gorjal de aço, assim como a greva, não tinha parado Fúria de Witanburg.
Dardan suspirou, num misto de alívio e cansaço. Então ouviu os gritos.
Os homens da Ânglia erguiam as armas e urravam em celebração, enquanto Ênor, rei de Vilmord, morria.

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