quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Vilmord - Parte 2 (inacabada)

A 2ª Parte de VILMORD, ainda inacabada e sujeita a mudanças. O Capítulo XV, especialmente, terá que sofrer sérias modificações.

2ª PARTE: VINGANÇA

Capítulo IX

A pira foi acesa. Ênor ainda usava sua armadura completa. Apenas o gorjal despedaçado fora substituído, de forma que a nova peça escondia o corte que havia matado o rei. As mãos, cobertas com as manoplas de aço, se fechavam sobre o punho de uma espada qualquer. Dente de Dragão fora entregue ao príncipe.
Fargost olhava. Não havia lágrimas em seus olhos, mas ele não estava menos infeliz que qualquer um daqueles vilmorianos. Ênor não era seu rei. Era seu amigo. Era quase um irmão. E Fargost lhe devia a vida.
A pira funerária era rudimentar, feita com madeira tirada de uma torre de cerco desmontada. Alguns diriam que era imprópria para um rei, mas Ênor, o Forte, não teria reclamado. Nunca fora um homem para pompas.
O príncipe Erik chorava. Sem soluços, sem gemidos. Apenas fitava as chamas, sério, enquanto lágrimas lhe lavavam o rosto. Seu pai teria se orgulhado.
Agora o fogo já havia tomado toda a pira. Uma coluna espessa de fumaça subia ao céu escuro e nublado. Já era noite. O brilho da lua podia ser visto por trás da camada esfarrapada de nuvens. Um vento gelado, que nas terras do Sul só ocorreria no inverno, agitava os estandartes dispostos ao redor da pira.
O frio era mais que um incômodo. A longa barba ruiva de Fargost, presa em três tranças, fazia pouco para aquecer seu rosto. A geada havia derretido durante a tarde, mas já começava a se assentar outra vez. Os sulistas se esforçavam para acender uma fogueira, mas o vento não colaborava. Fargost havia se esquecido do quão invernal era o início da primavera nórdica.
- Cada dia é pior que o anterior - reclamou Hassan, trêmulo e infeliz.
- Imagine quando chegarmos a Vílerath - disse o anão.
- Sim, fica bem mais para o norte.
- Mais para o norte e na encosta de uma montanha - explicou Fargost. Hassan o olhou incrédulo, como que se perguntando porque o sultão os enviara a uma missão suicida.
- Espero que as putas de Vílerath sejam realmente boas como você disse - comentou Ahmed, que, sentado numa rocha, passava a pedra de amolar em sua longa espada curvada.
- Eu também espero - respondeu o anão - Depois de todo esse gelo, precisaremos de algo mais que lareiras e vinho para aquecer nossos corpos.
- O deus-sol repudia as putas - disse o jovem Sayid. Fargost sentiu uma vontade enorme de esmurrá-lo.
- Então fico feliz por o deus-sol não ser o único deus que temos - retrucou Fargost. Estava pensando em Sedila, a deusa da paixão e da luxúria. Lembrou-se do comentário de Ênor, de que havia boatos afirmando que Dardan fornicava com deuses. Fargost imaginou como seria fornicar com Sedila.
- O deus-sol é o senhor de todos os deuses - continuou Sayid.
- Meu jovem - disse o anão - se você falar no deus-sol mais uma única vez, juro por todos os deuses que enfiarei um arcabuz no seu rabo e explodirei suas malditas tripas.
Aquilo foi o bastante para calar Sayid. Os homens mais próximos riram, irritando o rapaz. Fargost conseguira mais uma vez.
Mas então o anão notou os rostos dos vilmorianos. Olhavam com reprovação para os sulistas. Com certeza as risadas os haviam enfurecido tanto quanto a Sayid. Afinal, não era respeitoso fazer piadas durante o funeral de um rei. Porém, acima de tudo, olhavam com indignação para Ahmed.
- Ahmed! - chamou Fargost - Guarde a droga da espada!
O robusto sulista pareceu não compreender por um instante, depois viu os rostos nórdicos e guardou imediatamente a espada e a pedra de amolar.
As orações já tinham começado. Um clérigo que Fargost não conhecia estava ajoelhado na terra, erguendo as mãos para o alto e pedindo que o deus-sol desse forças ao povo de Vilmord, que julgasse o rei Ênor e o levasse ao seu merecido destino no pós-vida, que desse sabedoria ao novo rei.
Novo rei. Fargost olhou para o príncipe. Ele continuava sério, mas havia enxugado as lágrimas. Era parecido demais com o pai. O anão ficou se perguntando que tipo de rei ele seria. Erik, o Forte? Não. Ele não havia herdado a robustez de Ênor e provavelmente também não tinha seu apetite para a batalha. Erik, o Sábio? Talvez o deus-sol atendesse às preces do clérigo. Erik, o Astuto?
Agora o clérigo estava pregando. Pedia fé aos guerreiros de Vilmord. Muitos deles tocaram os amuletos em forma de sol que tinham no pescoço. No Sul, tais amuletos eram considerados uma bobagem supersticiosa e, dependendo da região, uma heresia. Fargost sempre se perguntara porque os homens tinham maneiras tão distintas de interpretar as leis de um mesmo deus.
O clérigo ainda pregava. Fargost não aguentava mais ouvir sua voz. Os anões, de um modo geral, não eram grandes fãs do deus-sol. Ele era um dos símbolos do antigo Império Laemoriano; o mesmo império que massacrara os reinos anões e tornara sua raça escrava da humanidade. Aquele império caíra havia quase um milênio e a escravidão dos anões desaparecera de quase todo o continente, mas seus reinos nunca foram reconstruídos. Com exceção, é claro, do enigmático reino de Farl.
- Se for a vontade de Hózus - gritava o clérigo naquele momento - as legiões de Vilmord conquistarão todos os reinos do Norte! Se esta for a vontade dele, não haverá um elfo que poderá ficar em nosso caminho! Mas nós temos que fazer por merecer! Vocês, soldados de Vilmord, têm que demonstrar fé!
Fargost não tinha dúvidas de que naquele exato momento havia clérigos na Ânglia pregando que fora o deus-sol que dera aquela vitória a eles. Que, se fosse a vontade de Hózus, o Império Vilmoriano cairia e os anglos continuariam a ser um povo livre. Mas que, para isso, precisavam demonstrar fé.
Finalmente o homem parou de falar. Fargost pensou que começariam os últimos ritos funerários, que no Norte geralmente consistiam em músicas de batalhas antigas e um discurso sobre os grandes feitos do morto. Em vez disso, surgiu um sacerdote de Elbrus, o deus das montanhas. O discurso dele foi igualmente longo, porém muito mais interessante. Contou a história de Rokbert, o semideus filho de Elbrus e ancestral da família Ultren. Narrou como ele guiou a pequena tribo dos inques até as Montanhas Negras, onde, montado em seu dragão branco, os liderou na guerra contra os anões que lá viviam. Fargost sorriu nessa hora. Não se sentiu ofendido.
O sacerdote continuou sua narrativa, descrevendo como os inques haviam expulsado os anões e tomado as Montanhas Negras para si. Aprenderam a conviver com as montanhas, aprenderam a amá-las; e pelo poder de Elbrus se tornaram a nação mais poderosa do Norte. Então desceram de suas montanhas para conquistar todos os nórdicos, feito este que realizaram com sucesso e que os vilmorianos, descendentes dos inques, agora tentavam imitar.
- Mas chegou o dia em que os anões de Farl bateram em nossa porta - disse o sacerdote, pulando milênios de história. Esquecera-se de contar como a Horda dos inques havia caído, como os Altos Elfos e depois os laemorianos haviam conquistado as Montanhas Negras e como a religião do deus-sol havia chegado e se tornado mais importante que o culto ao deus das montanhas. Em vez disso, ele foi para a parte que mais lhe interessava: os anões de Farl e seus monstros mecânicos sendo despedaçados por Elbrus sob uma chuva de rochas.
Fargost viu homens erguendo as armas e comemorando, como se tivessem participado daquela vitória ocorrida séculos antes. O discurso do sacerdote de Elbrus dera certo, talvez mais certo que o do clérigo de Hózus. Falar sobre guerra a um bando de soldados desanimados era muito mais eficaz do que lhes pedir para ter fé.
A última etapa do discurso foi uma exaltação à Casa Ultren, descendente de Rokbert e, portanto, do próprio deus das montanhas. Começando por Richard Ultren, o rei exilado do extinto reino de Ironmark, que atravessou o mar e chegou a Vilmord, onde travou guerra contra os earls e os subjugou, tornando-se o primeiro rei vilmoriano. A narrativa prosseguiu, passando por diversos Ultrens importantes. Houve uma excitação especial entre os legionários quando o sacerdote citou Valkon, o Conquistador, o rei que iniciara a expansão imperialista de Vilmord.
E finalmente chegou a Guror, o Impiedoso, e depois a seu filho, Ênor, o Forte. Aquele foi o fim do discurso. O sacerdote se afastou da pira e os homens começaram a bater nos escudos e a cantar.
Ahmed estava roncando. Não era o único sulista que havia adormecido. Hassan, sentado o mais próximo que podia da fogueira, tremia inconsolavelmente. Sayid, emburrado, desenhava alguma coisa na terra usando um graveto.
A última música cantada foi Ker Gáret, “Bravo Povo”, uma espécie de hino nacional vilmoriano. Então era hora do discurso sobre os feitos de Ênor. Por tradição, essa honra caberia ao seu filho, mas Fargost viu que Erik vinha caminhando em sua direção, enquanto um outro vilmoriano qualquer começava a falar.
- Meu príncipe - disse o anão, acrescentando uma profunda reverência.
- Senhor Fargost - cumprimentou Erik - Creio que teremos negócios a tratar em breve.
- Muito em breve, Alteza. Assim que chegarmos a Vilmord, se possível.
- Porque não agora?
- Agora? - questionou o anão, olhando para a pira funerária e para o homem que discursava.
- Meu pai está morto - disse o príncipe com firmeza - Foi um grande homem. Tenho orgulho de ser seu herdeiro e sofro por ele ter partido, mas ele escolheu seu próprio destino.
- Escolheu - disse Fargost. Ênor era o tipo de homem que preferia morrer com uma espada na mão e outra na garganta do que terminar seus dias velho e fraco, deitado numa cama fedendo a doença.
- Ele deu sua contribuição pela glória de Vilmord - continuou o príncipe - E agora é minha vez.
Sayid estava prestando atenção. Não entendia uma sílaba, visto que o príncipe e o anão falavam em ynish, o idioma vilmoriano, mas sua mera presença era irritante.
- Sayid, vá buscar mais lenha - ordenou Fargost. O rapaz olhou para a fogueira do anão, que já estava atulhada de lenha. - Eu mandei você ir! - rosnou Fargost. Sayid obedeceu.
- Desculpe-me por perguntar - disse o anão para o príncipe - Mas que tipo de contribuição Sua Alteza espera dar ao seu povo?
- A mesma que meu pai - respondeu Erik - Glória - então seu olhar adquiriu um brilho estranho, intenso, como se ele estivesse visualizando o futuro no rosto de Fargost - Glória como nenhum vilmoriano jamais sonhou.
Então, soube Fargost, ele seria Erik, o Ambicioso.





Capítulo X

Estavam de volta a Zádia. As geadas noturnas haviam parado, dando lugar ao orvalho que agora, no início da manhã, cobria toda a encosta gramada. Um vento ameno soprava vindo de um céu azul e limpo. O sol, sem o manto branco-acinzentado que o cobrira durante quase todo um mês, brilhava em toda sua glória. À frente deles, descendo a encosta do vale escondido, erguiam-se altas as vistosas árvores de Zádia.
Leóffen não estava nervoso. Seus companheiros também não pareciam estar. Cento e oitenta e oito elfos tinham partido para a batalha. Apenas dois haviam morrido. Dois outros estavam feridos. Os humanos de Vilmord haviam perdido milhares dos seus.
“Nosso povo não interfere nas guerras humanas”, havia dito Zépheron, tio de Leóffen e ancião dos elfos de Zádia. “Não importa a que deuses servem.”
Leóffen argumentara, dizendo que todos os servidores de Namnel, a Mãe, deveriam se proteger mutuamente. Seu argumento fora em vão. Por isso, mesmo contra a decisão de seu tio, ele reunira seu próprio exército e marchara em auxílio de Dardan. Sabia que iria pagar por isso. Mas não tinha medo. Não se arrependia.
Terminaram de descer a encosta e chegaram às primeiras árvores. Leóffen inspirou profundamente, enchendo os pulmões com o cheiro forte da floresta. Como sentira falta daquilo! Amava aquele lugar. Era triste pensar que, provavelmente, aquele seria seu último dia em Zádia.
As árvores, densas de folhas e emaranhadas de galhos, escondiam bem as sentinelas que lá de cima vigiavam todo o vale. Junto delas, pássaros e esquilos brincavam em meio à folhagem. Leóffen sempre achara estranho ver como os animais fugiam à presença dos homens e das outras raças inferiores.
Passaram pelas dezenas de casas nas árvores que serviam de moradia para os zadianos. Ninguém estava ali. Na clareira ao centro da floresta, em contrapartida, havia uma massa de elfos reunidos. Eram centenas: jovens e velhos, mulheres e crianças; todos os habitantes de Zádia que não estavam ocupados vigiando as bordas da floresta. Leóffen conhecia o rosto, o nome e a história de cada um deles.
Assim que se aproximaram da multidão, esta abriu caminho, deixando uma passagem estreita que conduzia até onde o ancião, rodeado por alguns dos elfos mais proeminentes de Zádia, estava sentado sobre um tronco velho e caído. Leóffen seguiu sozinho. Seus cento e oitenta e quatro companheiros fizeram menção de acompanhá-lo, mas ele gesticulou para que esperassem ali, junto da multidão.
- Leóffen - cumprimentou seu tio quando ele parou diante do tronco que lhe servia de assento.
- Ancião - ele retribuiu o cumprimento.
Zépheron era muito velho, mesmo para um elfo. Quinhentos e trinta anos pesavam-lhe sobre as costas. Ainda assim, mantinha o mesmo vigor de um século antes, quando Leóffen era um garoto. Tinha os cabelos compridos e prateados característicos de sua família, os olhos brancos e sem pupilas de um elfo e a barba alva como a neve. Suas vestes também eram brancas.
- Como correu a batalha? - perguntou o ancião.
- Vencemos - respondeu Leóffen secamente.
Zépheron ergueu as sobrancelhas, num gesto claro de desdém, como querendo que o sobrinho explicasse como aquilo podia ser considerado uma vitória para o povo de Zádia.
- A Ânglia está a salvo - continuou o jovem elfo - Servidores fieis da Mãe estão a salvo.
- A salvo de que?
Leóffen franziu o cenho.
- Da escravidão - deu a resposta óbvia - Da injustiça. Da humilhação.
- Ah, humilhação - disse o ancião, com a voz e a expressão de quem acabou de entender um problema complexo - Então cento e oitenta e oito zadianos mataram, sendo que dois deles morreram, para, entre outras coisas, manter o orgulho de nosso amigo Dardan intacto?
Leóffen sentiu uma leve pontada de raiva.
- Matamos e morremos para que todos os filhos de Namnel sejam livres - respondeu.
- Mataram e morreram em vão, portanto - devolveu Zépheron - São filhos de Namnel todos os homens, bem como todos os anões, orcs e jotuns, todos os faunos e centauros, harpias e trolls, dríades, goblins, gnomos, homens-fera e dragões, todas as criaturas que andam, rastejam, voam ou nadam, e também aquelas que vivem e se alimentam sem se locomover. Então conte-me, Leóffen, como a morte de seis mil humanos pode assegurar que todos esses seres vivam em liberdade.
Leóffen bufou.
- Eu me referia aos filhos leais de Namnel.
Zépheron suspirou.
- Os homens são como essas criaturas - disse, fazendo um gesto na direção dos animais que adornavam os altos galhos das árvores zadianas - Agem por instinto. Temem a perfeição. Não podem ser livres. Não conseguem.
- Eles estão aprendendo conosco - retrucou Leóffen - Especialmente Dardan.
- Sim, ele é de fato um ser iluminado. Um prodígio entre os homens. Mas, ainda assim, um homem.
- E isso o torna menos merecedor nós?
Zépheron respirou fundo. Parecia estar ficando impaciente, o que não era muito comum.
- Os homens foram criados com um propósito - explicou, com ar cansado - Mas se desviaram desse propósito quando se voltaram contra a Mãe.
- Talvez tenham sido os ërean que se desviaram de seu propósito primeiro.
Zépheron olhou para o sobrinho com curiosidade. Ërean era como eles chamavam os Altos Elfos.
- Os filhos prediletos da Mãe - prosseguiu Leóffen - Talvez a própria Mãe, que Ela me perdoe, tenha errado ao elevá-los acima de todas as outras criaturas. Talvez isso os tenha tornado arrogantes, e se assim foi, certamente essa arrogância foi a causa da revolta dos homens.
- Você fala sobre coisas que não vivenciou, meu jovem - disse o ancião.
- E você vivenciou? Você estava lá há onze milênios? Estava lá há dois milênios e meio, quando os ërean, assim como os homens haviam feito, traíram a Mãe?
Não houve resposta. Os únicos sons audíveis eram o farfalhar nas folhas e o canto dos pássaros. Zépheron ainda encarava o sobrinho.
- A raça dos homens ainda pode ser salva - concluiu Leóffen - Nós ainda podemos trazê-los de volta aos caminhos da Mãe e então, junto deles, espalhar Sua Luz outra vez pelo mundo. Mas os homens não virão se lhes dermos apenas palavras. Temos que lhes mostrar o poder de Namnel; mostrar que a Mãe não só ensina, mas também protege seus filhos.
Zépheron soltou um riso sem graça.
- Como eu disse, você fala sobre coisas que não vivenciou. Não seja tão apressado em julgar os ërean, rapaz. A culpa pela sombra que cobriu o mundo recai quase inteiramente sobre os ombros dos homens. Seres fracos e ingratos. Alguns deles hoje olham para a Luz e a contemplam com ardor, desejando-a, venerando-a à distância, mas não suportariam estar sob ela. Talvez, apenas talvez, um ou outro evolua ao ponto de suportá-la. Homens como Dardan podem nos dar essa esperança. Seja como for, não sou tolo o bastante para acreditar que toda a raça humana venha a atingir tal nível de desenvolvimento.
Leóffen não respondeu. Queria protestar; sua mente já estava até mesmo criando alguns argumentos, mas sabia que seu tio teria uma resposta para cada um deles.
- A meu ver, seu sobrinho não está tão equivocado, Zépheron.
Todos os olhos se voltaram para aquele que acabara de falar. Era um dos zadianos importantes que rodeavam o ancião. Fíneas era seu nome. Um elfo de meia-idade, com no máximo trezentos anos, de cabelos compridos brancos e vestes negras. Era um dos poucos ali que não haviam nascido em Zádia. Seu passado era um mistério; a não ser, talvez, para Zépheron, que tinha o estranho em seu círculo de amigos mais íntimos.
- Descendemos tanto dos homens quanto dos ërean - apresentou Fíneas seu ponto de vista - Se considerarmos que os homens são uma raça sem esperança, então nós, que temos uma notável parte humana, também somos.
Fíneas fez uma pausa. Ninguém falou. Um bando de pássaros passou voando pela clareira, logo acima das cabeças da multidão.
- É claro que nada justifica o ataque de Leóffen aos vilmorianos - continuou o misterioso elfo, agora olhando para o sobrinho de Zépheron - Como disse o ancião, nosso povo não interfere nas guerras humanas. Isso, meu caro rapaz, entre outras coisas, tem assegurado nossa sobrevivência nesta terra habitada por seres que, no mínimo, sentem um grande desconforto em relação à nossa presença.
Leóffen manteve um olhar desafiador. Nunca gostara de Fíneas, mas naquele momento, em que o elfo mais velho lhe falava como se ele fosse uma criança, quase o odiava.
- Então o que você sugere? - perguntou Zépheron ao amigo.
Fíneas não respondeu de imediato. Continuou encarando Leóffen, mudo, durante um bom tempo.
- Sugiro - disse enfim - que o rapaz não seja banido.
Pela primeira vez, os demais elfos na clareira falaram. Foi algo breve, nada mais que uma rápida troca de murmúrios, baixos demais para que Leóffen pudesse decifrar as palavras.
- Ancião, eu não posso concordar com isso - falou Elenoth, uma elfa quase tão idosa quanto Zépheron, que também compunha o círculo de celebridades ao seu redor.
- Seu sobrinho - disse Éslon, outro dos elfos importantes - e todos aqueles que o seguiram quebraram um pacto que, como o próprio Fíneas expôs, tem assegurado nossa sobrevivência. Eles têm que ser punidos.
- Um pacto feito com humanos que há muito se foram - rebateu Fíneas.
- Mas cujos descendentes se lembram - teimou Éslon.
- Não quebramos pacto algum! - interveio uma voz feminina ao lado de Leóffen. Surpreso, ele viu que Laélia, sua mais fervorosa seguidora na batalha contra os vilmorianos, havia desobedecido sua ordem e entrado na tanto na clareira quanto na discussão.
- Dificilmente se lembram - rebateu Fíneas outra vez o comentário de Éslon, parecendo nem ter notado Laélia - Alguns síneos, talvez, mas isso não constitui necessariamente um problema.
- Como não? - indignou-se Elenoth.
- Eu tenho contatos entre os síneos. Amigos, pode-se dizer.
- Nenhum pacto foi quebrado! - repetiu Laélia - Tudo o que prometemos foi não ameaçar a existência dos homens!
- E respeitar sua soberania - corrigiu Éslon - O que inclui seu costume de matar uns aos outros.
- Onde você quer chegar, afinal? - perguntou Elenoth a Fíneas - Apontou os erros de Leóffen e agora o protege?
- Então devemos apenas nos deitar numa rede e assistir enquanto a escuridão consome o mundo de Namnel? - insistiu Laélia.
- A Luz está em nós, filha - explicou Éslon - Está em Zádia, em Falvath, em Felmur e em todas as nações de nosso povo. Não é fazendo uso da brutalidade, a ferramenta das trevas, que iremos espalhá-la.
- Como você pretende espalhá-la então?
- Não pretendemos - foi Fíneas quem respondeu - A Luz não é nossa para que a comandemos. Se os homens a querem, terão que buscá-la. Nós podemos apenas mostrar-lhes o caminho.
- Mas o que acontece, nobre Fíneas, caso os homens falhem em buscar a Luz, mesmo com os fëlkean mostrando o caminho? - perguntou Laélia. Chamara-o de “nobre” em claro tom de deboche. Ela também desgostava dele.
- Então este mundo perecerá - respondeu ele, dando de ombros, como se absolutamente não se importasse com o destino do mundo.
Aquilo foi mais do que Leóffen podia aguentar.
- Vocês são todos idiotas - ouviu-se dizendo. Imediatamente todos os olhos brancos da multidão se voltaram para ele. - Um bando de velhos desgastados pelo tempo; fracos demais para lutar por uma causa e caducos demais para se importar com alguma coisa.
- JÁ CHEGA!!! - vociferou o ancião. Colocou o poder do cristal naquela exclamação, de modo que sua voz, naturalmente grave, ribombou como um trovão e ecoou por toda a floresta, fazendo uma nuvem de pássaros levantar vôo. Até mesmo Leóffen, orgulhoso como era, sentiu medo.
- De fato, um pacto foi quebrado - disse Zépheron, olhando com especial reprovação para Laélia - Foram postas em cheque a segurança de Zádia e a palavra dos fëlkean como um povo. Leóffen - ele olhou agora para o sobrinho - e seus seguidores poderiam ter, em outras circunstâncias, a chance de remediar a situação infeliz que criaram, e dessa forma se redimir de seus crimes.
Algumas vozes soltaram breves murmúrios, que foram rapidamente silenciados pela mão erguida de Zépheron.
- No entanto - continuou ele - mais devido à sua óbvia incapacidade de resolver o problema do que à própria gravidade do crime, tal clemência não pode ser concedida.
Leóffen engoliu seco. Acreditava estar pronto para enfrentar seu destino, mas, agora que a sentença era pronunciada, sentia como se o mundo estivesse desabando.
- A partir deste dia, vocês não mais são considerados parte do povo de Zádia. Recolham seus pertences, despeçam-se de seus entes queridos e deixem nossa floresta. Que Namnel os proteja.
O ancião se levantou. Os elfos proeminentes ao seu redor deram passagem e o seguiram. A multidão, enquanto isso, começava a se dispersar.
- Zépheron!
Era Fíneas quem chamava. Ele ainda estava parado ao lado de Leóffen. O ancião se virou.
- Pelo bem de Zádia, eu imploro que reconsidere - disse o elfo em vestes negras - Você sabe tão bem quanto eu que esse caminho não nos levará aonde queremos chegar.
Para Leóffen, aquilo não fez muito sentido. Mas, claro, havia algum significado oculto naquelas palavras, como sempre parecia haver em todas as palavras proferidas por Fíneas. Qualquer que fosse a mensagem, Zépheron a havia entendido. Refletiu em silêncio durante longo tempo, com uma nítida expressão de dúvida no rosto. Uma batalha devia estar ocorrendo ali dentro. Por fim, o ancião dirigiu um último olhar a Leóffen e, sem nada dizer, deu-lhe as costas. Sua decisão não fora revogada.
Meia hora depois, Leóffen se encontrava na borda da floresta, inspirando o cheiro de Zádia uma última vez antes de partir. Não se despedira de ninguém. Os únicos entes queridos que lhe importavam, naquele momento, eram seus cento e oitenta e seis companheiros que o seguiriam para o exílio. Da mesma forma, seus únicos pertences eram o arco, as espadas e o cristal.
Antes de deixar seu lar, contudo, Leóffen recebeu a inesperada - e indesejada - visita de Fíneas.
- Peço que fique por perto, jovem guerreiro - disse o elfo mais velho - O orgulho e o dever impedem seu tio de admitir, mas ele viu o que eu vi e sabe o que eu sei.
Leóffen não respondeu. Mesmo tendo aquele estranho se esforçado para salvá-lo do exílio, isso não diminuíra a antipatia que o jovem sentia por ele desde a primeira vez que o vira. Era aquela sua arrogância velada que o irritava; aquele ar de superioridade com que ele falava, como se o mundo fosse cheio de mistérios que apenas ele conhecia.
- Zádia precisará de você - continuou Fíneas - Muito em breve, temo. Você é um minério bruto, Leóffen. Possui muitos dos defeitos inaceitáveis para um comandante dos fëlkean, mas possui uma força e uma vontade extraordinárias. Se bem trabalhado, o minério bruto e inútil poderá se converter na mais afiada das lâminas; a arma perfeita para defender o povo de Zádia.
E então, apenas então, Leóffen passou a desgostar um pouco menos de Fíneas.


Capítulo XI

As Montanhas Negras. O solo escuro e rochoso, quase totalmente desprovido de vegetação, a não ser nos vales. O ar sempre frio, como um constante lembrete da ameaça do inverno. Neve que só terminava de derreter na metade da primavera e já voltava a cair antes do fim do outono. Assim era a pátria de Erik. Vilmord. O reino dos inques.
Seria um dia quente, caso não estivessem tão alto nas montanhas. A estrada era bem feita, subindo com certa suavidade até os portões de Vílerath, capital de Vilmord. Não estavam longe. Erik podia enxergar o tremular das bandeiras que pendiam do arco de pedra acima da ponte levadiça.
- Lar, doce lar - disse Helgar, seu primo ruivo.
- Senti falta deste vento - respondeu Erik.
- Quando chegar o inverno, primo, você estará amaldiçoando este mesmo vento.
- Claro que estarei. Mas deixe-me amá-lo enquanto Pruína se mantém mansa.
Pruína, a deusa do inverno, era sempre mansa no verão. Ou, segundo os clérigos, era mantida à distância pelo poder do deus-sol. No inverno a história era outra. Os vilmorianos passavam praticamente a estação inteira trancados em seus salões, aquecidos com a lenha trazida dos vales e estocada durante o resto do ano.
Mas agora era primavera. A neve era pouca e o vento era apenas fresco. Isso, claro, para Erik e seus compatriotas nórdicos. Os cinquenta sulistas de Fargost tremiam tanto que dava pena. Estavam calados e carrancudos desde que haviam começado a subir as montanhas. Por ordem de Erik, os knias haviam lhes doado seus casacos, mas isso não parecia ter surtido qualquer efeito.
O séquito de Erik, se comparado ao vasto grupo que deixara a Ânglia, era agora pequeno. Além do anão e seus sulistas, apenas os knias e os cinco generais, com seus serviçais e guardas, o acompanhavam. As legiões podiam percorrer livremente as colônias, mas eram proibidas de adentrar o reino de Vilmord.
Chegaram enfim ao portão. As duas imensas portas de madeira rebitada com aço estavam escancaradas, dando as boas-vindas ao exército derrotado e ao novo rei. Logo à frente das portas estava o fosso, profundo como a queda de um penhasco, atravessado pela ponte levadiça que se encontrava baixada. O dragão branco e as Estrelas Gêmeas balançavam em estandartes, tanto abaixo quanto acima do grande arco de pedra. Sobre este, nas ameias, besteiros e arcabuzeiros observavam.
Uma trompa soou dentro da cidade enquanto a comitiva atravessava a ponte levadiça. O povo estava nas ruas. Era comum, no verão, a população de Vílerath encher as ruas com seus afazeres rotineiros, mas naquele momento parecia que toda a cidade estava ali. Quem não se apinhava na multidão observava das janelas nas altas casas de pedra. Era a curiosidade que os trazia ali. Todos queriam ver o regresso dos derrotados. A derrota era uma novidade. Desde Hodgar, bisavô de Erik, nenhuma batalha vilmoriana fora perdida.
Houve aplausos e alguns gritos esparsos, certamente destinados a elevar a moral daqueles homens abatidos. Tivesse sido uma vitória, os gritos preencheriam todos os becos de Vílerath e fariam a montanha tremer.
Conforme passavam pelo largo corredor aberto em meio à multidão, Erik notou algo além de compaixão nos rostos da plebe. Estavam assustados. Notícias da batalha obviamente haviam chegado a Vílerath muito antes deles. Mas o momento de tranquilizar o povo não era aquele. Não pelas palavras de Erik. Havia nobres a acalmar primeiro e um Conselho a reunir, mas o futuro rei, naturalmente, enviaria algumas dezenas de clérigos para já ir dando algum conforto à população.
Subiram a Rua do Rei em silêncio, parando em frente ao castelo, onde um pequeno grupo cercado por pelo menos duas centenas de guardas os esperava. Era o Conselho. Todos os sete earls e os oito grão-clérigos de Vilmord, além de Rikbald, o Clérigo do Rei. Outras figuras importantes também estavam ali. Hilde, esposa de Erik, era uma delas. Sorriu ao ver o marido, mas foi um sorriso tão triste quanto os aplausos do povo na entrada da cidade.
- Sua Alteza - cumprimentou Rikbald - Diga-nos que não é verdade.
Erik suspirou.
- O rei está morto - disse - Dardan o derrotou em combate singular.
- Então ele morreu como gostaria - falou Ralf, earl de Österheim e pai de Helgar.
- E quanto aos elfos? - perguntou, parecendo apavorado, o earl Aldgan de Askaheim.
- Os elfos interferiram e impossibilitaram nossa vitória - disse Erik simplesmente, depois olhou para todo o Conselho - Venham, senhores, pois a Rua do Rei não é o melhor lugar para discutirmos assuntos do império.
Erik seguiu adiante, parando apenas para beijar a esposa e abraçar a filha.
- Meu avô está morto? - perguntou a pequena Anne.
- Ele foi para o salão dos grandes herois - disse Erik, acrescentando um sorriso meio forçado, mas convincente, a julgar pela expressão de contentamento no rostinho de Anne.
Foi então que ele notou que Brunna, sua prima, estava parada atrás de Hilde. Brunna, irmã de Helgar, portadora dos mesmos olhos azuis espertos e dos mesmos cabelos vermelhos.
- Alteza - cumprimentou ela com uma pequena reverência. Erik apenas assentiu e continuou andando.
Meia hora mais tarde estavam na Sala do Conselho. Earls, grão-clérigos e  Rikbald tomaram seus lugares ao redor da imensa mesa circular de mármore. Erik, tendo sempre participado das reuniões como mero espectador, sentou-se agora na cadeira mais alta, aquela que antes fora ocupada por seu pai. Não estava nervoso. Na verdade, sentia-se extremamente calmo. Estava no sangue Ultren, afinal, sentir-se confortável com o poder.
- Seis mil homens - começou Erik - Os elfos nos tiraram seis mil homens numa questão de minutos. Nem mesmo todos os esforços dos anglos para defender sua maldita cidade, durante cinco dias, nos causaram tantas perdas.
Erik aguardou, mas ninguém respondeu.
- Portanto, senhores - continuou o príncipe - devemos esquecer a Ânglia. Pelo menos nas atuais circunstâncias.
- E há alguma esperança de que as circunstâncias mudem? - perguntou o earl Ruffus, sogro de Erik.
- Tudo sempre muda - respondeu Ralf, parecendo não dar muita importância. Ralf, assim como o filho, era alguém extremamente difícil de decifrar. A filha também, mas não para Erik.
- Neste exato momento, meus caros senhores, mensageiros nossos viajam para o Santo Templo em Chevaliôn - disse o grão-clérigo Uller - A Ordem do Sol não deixará essa ofensa impune.
- E você, grão-clérigo, com todo o respeito, acredita mesmo que a Ordem do Sol se sentirá ofendida porque os elfos mataram alguns milhares de vilmorianos? - questionou Ralf. O velho Uller ficou visivelmente irritado.
- Ao atacar um exército de homens, aquela raça imunda ofendeu toda a humanidade! - gritou Eithar, outro grão-clérigo. Seus companheiros do Clero, assim como alguns earls, murmuraram em aprovação.
Mas Ralf soltou breve riso de desprezo.
- Tenho certeza de que os síneos e seus deuses têm problemas mais importantes para resolver.
Aquilo fez com que todos os oito grão-clérigos lançassem seus olhares mais furiosos na direção de Ralf. Rikbald, o Clérigo do Rei, apenas o ignorou.
- Zombar dos deuses não é uma atitude aconselhável, earl - ameaçou Uller.
- Especialmente do deus-sol! - rosnou Eithar.
- Também tenho certeza de que o deus-sol me perdoará por essa pequena ofensa, visto todo o ouro que doo anualmente ao seu Clero.
Aquilo calou os grão-clérigos, mas não tornou seus rostos menos azedos.
- Senhores, por favor - interveio Erik - Como eu disse, devemos esquecer a Ânglia por enquanto. Mas há outros lugares a serem tomados.
- A Eslávia? - perguntou o earl Úgor, como se a palavra tivesse um gosto amargo.
- Ninguém conquista a Eslávia - opinou Aldgan com ar sombrio.
- Nós conquistaremos - afirmou Erik peremptoriamente - Mas primeiro sugiro que voltemos nossas atenções para o norte - ele tocou o mapa esculpido na mesa de mármore, indicando o extremo norte da península.
- Norte? Conquistamos tudo o que valia a pena ser conquistado ali - falou Úgor com desdém.
- Não conquistamos Volikast - replicou Erik.
Úgor o olhou como se ele fosse louco. Erik não achou interessante verificar, mas certamente todo o resto do Conselho deve tê-lo olhado da mesma forma.
- Ninguém conquista a Eslávia - repetiu Aldgan - Mas Volikast ninguém nem ao menos tenta.
- Eu tentarei - respondeu Erik, olhando Aldgan de um modo que o fez engolir seco - Nós tentaremos - corrigiu.
- Não com o meu voto - disse Úgor.
- Nem com o meu - acrescentou Aldgan.
- Tampouco o meu! - exclamou o grão-clérigo Eithar.
E assim, um por um e depois todos ao mesmo tempo, earls e grão-clérigos demonstraram sua completa aversão à ideia louca de Erik. Pois louca ela era. Afinal, que homem são se atreveria a invadir o Reino das Aranhas?
“Chevaliers e eslavos, anglos e kértios, homens-lobo e homens-aranha”, havia dito seu pai. “Vamos foder todos os reinos do Norte, cada um deles, até que não reste uma única bunda intacta em Nordgard”.
Erik se recostou na cadeira e respirou fundo. Controlar o Conselho seria bem mais difícil do que ele imaginara. Governar não deveria ser assim. Ele era o rei. A decisão devia ser sua e somente sua.
- Senhores! - exclamou Ralf. Apenas ele e Rikbald não haviam expressado qualquer opinião sobre a invasão de Volikast - Parece-me que estamos colocando o trenó na frente dos cães, como se diz em Áskar. Antes de discutirmos sobre elfos e aranhas seria interessante termos um rei sentado no Conselho, não?
Os demais murmuraram concordando. E três horas mais tarde estavam de volta à Rua do Rei, à frente dos portões abertos do castelo. Em Vilmord a coroação de um rei não se dava dentro de um templo, como acontecia em Chevaliôn ou na Teutônia. O objetivo disso era mostrar que nenhum deus era favorecido, embora o deus-sol tivesse a óbvia preferência popular e fizesse parte do governo. De qualquer forma, tanto o esplendor do sol quanto a magnitude das montanhas podiam ser vistos em toda sua beleza naquela tarde de céu limpo e vento suave. Os deuses, tanto Hózus quanto Elbrus, e talvez alguns mais, pareciam abençoar a coroação.
Erik havia se lavado e se perfumado com aqueles frascos de líquidos aromáticos trazidos das terras jínadas. Havia feito amor com Hilde e depois deixado os criados o vestirem com suas mais finas roupas de tecido importado do Leste. Vestes azuis e brancas, as cores de Vilmord, com o dragão branco bordado com fios de prata, o que o tornava, de fato, um dragão cinza metálico.
As mulheres da corte cochichavam conforme ele passava. Quando as olhava e cumprimentava com um breve gesto de cabeça, algumas até mesmo ruborizavam. Erik estava acostumado com isso. Desde garoto as meninas o devoravam com os olhos; e isso se devia muito pouco à sua posição como príncipe. Era um homem bonito como o pai havia sido. Também como o pai, soubera aproveitar o presente que os deuses lhe deram. A magnífica Bréa, atual amante do earl Ruffus, deixara de ser donzela na cama de Erik. Porém, diferente de Ênor, o Forte, Erik passara a manter a espada dentro da bainha após se casar. Pelo menos na maior parte do tempo.
Hilde e Brunna estavam ali, lado a lado, conversando e rindo como melhores amigas. Aquilo quase o fazia se sentir culpado. Anne estava entre elas, observando o pai com nítido orgulho.
Como de costume, clérigos de Hózus com suas vestes brancas e douradas se enfileiraram de um dos lados da rua, enquanto do outro, fazendo contraste, estavam os sacerdotes de Elbrus cobertos com capas cinzentas, grossas e surradas. A Rua do Rei terminava num círculo, uma espécie de praça, e foi no centro deste que Erik parou. Ao seu redor estava toda a nobreza de Vílerath e de diversos outros pontos do reino, além de clérigos, sacerdotes e grossas fileiras de guardas. Parados sobre plataformas improvisadas de madeira, acima da multidão, besteiros e arcabuzeiros completavam a segurança. Fora da praça, espremendo-se na rua e dos dois lados desta, estava a plebe.
Não havia apenas vilmorianos. Homens, mulheres e crianças da Teutônia, de Áskar, de Chevaliôn, da Eslávia, de Kert, de Magyar e das Ilhas das Focas. Alguns ressentidos, outros indiferentes, muitos assustados. Os serviçais de Vilmord, os nativos das colônias, trazidos por seus senhores vilmorianos para testemunhar a glória de seu novo rei.
Erik pigarreou para limpar a garganta.
- Nórdicos - começou, referindo-se a todos os presentes, colonos e colonizados - Desde que as Estrelas Gêmeas guiaram Aekir, o Primeiro, até o solo áspero de Nordgard, e desde que os deuses da montanha, do gelo, da guerra, do mar e do fogo escolheram ele e seus filhos como aqueles que domariam o Norte, nenhuma outra raça se estabeleceu nesta terra.
A multidão o encarava. Muitos dos vilmorianos assentiram, aprovando. O velho Uller, e certamente muitos outros clérigos, havia feito uma rápida careta quando Erik mencionara “deuses do gelo”. Era uma alusão a Pruína, deusa do inverno e inimiga de Hózus, mas tal alusão nascera de uma lenda contada muito antes de Vilmord ter se convertido ao Clero e, consequentemente, ter passado a considerar a deusa gelada uma figura herética.
- Pois o Norte, meus compatriotas, pertence aos nórdicos! - continuou Erik, fazendo questão, mais uma vez, de olhar tanto para os vilmorianos quanto para seus serviçais estrangeiros - Os sulistas tentaram e fracassaram! - agora ele evitou olhar para os cinquenta sulistas de Fargost, que ali estavam junto da nobreza vilmoriana - Os elfos tentaram e fracassaram! Os laemorianos tentaram e fracassaram! Por que, eu lhes pergunto?
Erik fez uma pausa, mas não esperava realmente que alguém interrompesse seu discurso para responder.
- Porque Nordgard é nossa - prosseguiu o futuro rei - Aekir a domou, a tornou sua, a povoou com seus filhos netos, e estes com seus própios filhos e netos, e agora aqui estamos nós, herdeiros de Aekir, donos desta terra cujo solo se mistura às cinzas de nossos ancestrais! Nordgard é nossa! Da mesma forma que nós amamos esta terra, ela nos ama!
Outra vez os vilmorianos aprovaram, agora não apenas assentindo, mas também murmurando palavras de apoio. Os servos estrangeiros, no entanto, permaneciam calados.
- Por isso, meus caros filhos do Norte, nenhum sulista, nenhum império forasteiro e nenhum elfo jamais poderá criar raízes aqui. E eu prometo, como rei - agora ele olhou firmemente nos olhos dos vilmorianos, e apenas neles - Prometo que nenhum maldito elfo nos dirá o que podemos ou não podemos fazer. Pois no Norte quem dita a lei são os nórdicos!
Aquele devia ter sido o final do discurso, um final triunfante, mas os aplausos foram pouco empolgados e os rostos, principalmente os vilmorianos, pareciam confusos. Teria sido porque ele falara dos elfos? Talvez o povo o achasse louco ou idiota por querer desafiar aquelas criaturas, da mesma forma que o Conselho ficara pasmo ao ouvir seus planos de invadir o Reino das Aranhas. Ou será que se dirigir aos vilmorianos e a seus servos em pé de igualdade não fora, afinal, uma boa ideia? Erik havia esperado gritos de empolgação e aplausos que chacoalhariam até os deuses em seus altos salões, mas alguma coisa dera errado em sua última fala. Por isso ele continuou falando.
- Nenhum filho do Norte será guiado senão por sua própria vontade! E pela vontade dos deuses! - acrescentou rapidamente, lembrando-se de não desagradar o Clero e os sacerdotes de Elbrus - Heil Aekir! Heil Rokbert! Heil Ultrik! Heil Elbrus e Hózus!
Agora os aplausos foram um pouco mais fortes, acompanhados por gritos de heil, mas Erik ainda não atingira o objetivo esperado. Não tinha mais o que dizer, no entanto, e assim assentiu para Rikbald, o Clérigo do Rei, que se aproximou trazendo Dente de Dragão em sua enorme bainha de couro. Erik a desembainhou e a mostrou para a multidão, de modo que esta pudesse ver as runas brilhantes que provavam seu direito ao trono. Então, voltando a ponta da espada para o chão pavimentado de Vílerath, o príncipe se ajoelhou. Era chegada a hora.
- Erik, filho de Ênor, da Casa Ultren - começou Rikbald, segurando a coroa de pedra logo acima da cabeça abaixada de Erik - Aqui e agora, na terra sagrada dos inques, na montanha real de Vílerath, eu, Rikbald Senwulfson, clérigo e membro do Conselho pela vontade de Hózus, o declaro Rei de Vilmord e Senhor dos Inques.
A coroa foi posta. Erik sentia o coração batendo forte como o murro de um eslavo. Por um momento, tudo o que ouvia era o ritmo lento e vigoroso do tambor que trazia no peito, mas então, de modo tão súbito, até mesmo assustando-o, trovejaram novamente os aplausos. Agora potentes, fornecidos com vontade, o primeiro tributo do povo ao seu novo rei. E gritos! Gritos de aclamação, bradados por vozes nitidamente cheias de júbilo. As coisas não tinham dado, afinal, tão errado assim.
- Foi um belo discurso, Majestade - disse o earl Ralf quando havia chegado sua vez de dar os parabéns ao rei. Parecia haver uma leve ironia ali, mas era difícil ter certeza com Ralf. Seu filho foi mais claro.
- Não foi tão ruim - disse Helgar, sorrindo e abraçando aquele que chamava de primo - Mas os próximos têm que ser melhores. Vamos trabalhar nisso.
- Vamos? - Erik fingiu surpresa - Fico feliz por saber que terei sua ajuda, Helgar Ralfson.
- E você acha que eu o deixaria governar sozinho? Pobre Vilmord se eu fizesse isso.
Os dois riram e se abraçaram outra vez, e então Helgar se afastou e era a vez de Brunna. Erik apenas a contemplou em silêncio. Era linda; linda como Hilde, mas havia algo mais naquele corpo delgado e ainda assim bem provido de curvas, ou talvez nos cabelos vermelhos e nos olhos astutos.
- Parabéns, meu primo - disse ela enfim, abraçando-o e beijando-o no rosto. Aquilo foi o bastante para deixá-lo com problemas.
- Obrigado, senhorita - respondeu ele, retribuindo o beijo e lutando para não deslizar as mãos por aquelas curvas.
Brunna se afastou para ir cumprimentar a nova rainha, enquanto Erik, verificando rapidamente se a rigidez de seu membro não estava visível - e pela graça dos deuses não estava - recebia o próximo parabenizante. Era Ródrion, seu primo loiro e robusto.
- Majestade - disse o rapaz, ajoelhando-se diante do rei - Parabenizo-o por este dia de glória. Também digo que, se aceitar meu juramento, não haverá homem mais leal e mais capaz em sua guarda de honra.
Aquilo era novidade. Ródrion entre os knias? Não parecia uma má ideia.
- Vou apresentar seu pedido ao comandante Ulfric - prometeu Erik.
- Obrigado, Majestade - alegrou-se Ródrion, depois se ergueu e deu no primo um abraço de urso.
E agora era a vez de Úgor. Úgor Ulrikson, earl de Homeinberg e tio de Erik pelo lado materno. Um tio por quem ele não nutria nenhum afeto.
- Que seu reinado seja longo e próspero, Majestade - disse Úgor, mas não havia sorriso em seu rosto. Não havia nada.
- Desejo o mesmo para o senhor, earl - respondeu Erik, recebendo o abraço do tio.
- Não sou rei, Majestade - retrucou Úgor.
- Que seu governo como earl seja igualmente longo e próspero, Úgor de Homeinberg - corrigiu Erik.
Seu tio o encarou. Travou os olhos nos seus e demorou desconcertantes segundos para falar.
- E que as aranhas de Volikast tenham uma morte tranquila - disse enfim o earl, depois riu e saiu andando.
Então Erik começou a odiá-lo. Porque Úgor, percebeu ele, seria a peça mais difícil de mover em seu tabuleiro.



Capítulo XII

- Lá está - disse Bádlin - Vílerath, capital de Vilmord - acrescentou, depois riu, imaginando quão rápido seus mísseis poderiam reduzir a pó aquela orgulhosa cidade.
- Qual é a graça, anão? - perguntou o vilmoriano grisalho. Bádlin já esquecera seu nome. Ralford? Rallus?
- Lembrei de uma piada - respondeu o anão.
- Então guarde-a para si. Suas piadas não me interessam.
- Interessarão ao seu rei - retrucou Bádlin, imaginando qual seria a reação de Erik de Vilmord ao receber a visita do rei de Farl. Os vilmorianos, pelo que ele sabia, ainda assustavam seus filhos com histórias sobre os terríveis monstros metálicos de Farl, cuspidores de fogo e chumbo, que quase haviam destruído Vilmord uma vez.
- Ainda acho que isso é loucura, Bádlin - opinou Billi, seu irmão e braço direito. Falava em klad’n, o idioma de Farl. O vilmoriano grisalho ficou olhando e fez uma careta, como sempre fazia quando os anões conversavam em sua própria língua. Devia estar sentindo cheiro de traição. Se estava, seu olfato não era dos melhores. Bádlin vinha com a melhor das intenções. Ou quase.
- Perdeu sua confiança em mim, irmão? - questionou o rei de Farl.
- Não em você - respondeu Billi - É no elfo que eu não confio.
Bádlin sorriu.
- Ele é estranho, de fato - admitiu - Mas é sincero em seus propósitos.
- E você acha que conhece os propósitos dele? - replicou Billi com certo escárnio.
Bádlin olhou novamente para a montanha de Vílerath. A capital, bem aninhada na encosta, era uma visão atraente. Estava no sangue anão admirar as coisas construídas da rocha. Casas de pedra que, mesmo àquela distância, eram visivelmente mais magníficas que os castelos dos senhores kértios que faziam fronteira com o reino de Bádlin. Os vilmorianos haviam aprendido bem como trabalhar a rocha. Haviam aprendido bem com aqueles que mataram e expulsaram, os donos originais das Montanhas Negras, os anões do körd de Klad.
- Sei que os propósitos dele, por enquanto, convergem com os meus - disse enfim Bádlin, em resposta à pergunta do irmão.
Billi cuspiu.
- Por enquanto - disse, depois ficou mudo e sombrio. O vilmoriano grisalho ainda os olhava.
Aquele era um dia quente, de céu azul limpo e nenhum vento. Nem mesmo uma brisa. Toda a neve do chão havia derretido, de modo que pisavam num solo rochoso e cheio de poças conforme se aproximavam da ponte que levava de uma montanha a outra. A ponte, construída sobre gigantescos e maciços pilares de pedra, era outra maravilha arquitetônica plagiada dos anões.
Uma pequena torre de pedra, de aparência improvisada, servia de guarita para os homens que vigiavam aquele ponto da estrada e o vale arborizado abaixo. O vilmoriano grisalho conversou brevemente com aquele que parecia ser o comandante do posto de guarda; e este arregalou os olhos ao final da conversa. Rapidamente os lanceiros que barravam o caminho deram passagem e o grupo prosseguiu. Era um grupo grande; dois anões farlianos e pelo menos uma centena de vilmorianos bem armados os escoltando. Mais dez homens da torre foram acrescentados à escolta. Bádlin sorriu.
Duas montanhas depois, estavam diante dos imensos portões de Vílerath. Já era noite e o céu se tornara um mar negro inundado de estrelas. Do norte, porém, vinha uma legião de nuvens escuras.
Alguém gritou, de cima do arco sobre o portão, para que parassem. O homem grisalho ergueu uma mão e seus cento e poucos homens imediatamente interromperam os passos. O grisalho se adiantou sozinho.
- Quem vem aí? - perguntou a mesma voz que havia gritado.
- Capitão Ralof, da Torre de Haltsberg - respondeu o grisalho. Então esse era o nome. Ralof. Bádlin tinha certeza de que o esqueceria de novo um minuto mais tarde.
- E o que você quer em Vílerath, capitão Ralof?
Ele se virou e fez um gesto para que os dois anões se adiantassem.
- Farlianos - explicou quando estava ladeado por Bádlin e Billi - Querem falar com o rei.
A distância e a noite não permitiam, mesmo com as tochas e os braseiros dispostos ao longo do arco de pedra, que Bádlin visse direito, mas tinha certeza de que os homens acima do portão trocaram olhares nervosos. Talvez alguns estivessem até mesmo tocando os amuletos idiotas em forma de sol que os homens de Nordgard adoravam usar.
Uma hora depois estavam Bádlin e Billi confortavelmente instalados no castelo de Vílerath, sentados em cadeiras bem acolchoadas e servindo-se de generosas porções de porco e pão fresco enquanto aguardavam o rei. Ou melhor, Bádlin se servia dessas porções, usando cerveja vilmoriana para empurrar a carne goela abaixo, enquanto Billi apenas olhava desconfiado.
- Não está envenenada, irmão - disse o rei farliano com a boca cheia de pão.
- Não tenho fome - respondeu Billi, mas aquilo era impossível. Um anão sempre tinha fome quando colocado diante de carne e cerveja. Bádlin apenas deu de ombros e continuou comendo.
Erik apareceu pouco tempo depois, trajando ricas roupas de seda e veludo e uma capa vermelha às costas. Sobre sua cabeça estava a coroa de pedra. Quase todos os reis humanos usavam coroas de ouro e prata, ou bronze e cobre nos reinos mais pobres, mas os vilmorianos preferiam a pedra. “Somos filhos da montanha”, aquilo dizia. “Nascidos na rocha”. Mais um conceito roubado dos anões.
Os farlianos se levantaram. Bádlin limpou a boca engordurada na manga da roupa de viagem, enquanto Billi abaixava a cabeça em sinal de respeito.
- Majestade - disse. Erik assentiu, cumprimentando-o, depois ficou olhando para Bádlin, certamente esperando que ele demonstrasse o mesmo respeito que o irmão.
- Um rei não curva a cabeça perante outro rei - explicou o anão mais velho. Aquilo fez Erik erguer as sobrancelhas.
- Meus homens disseram que dois farlianos queriam me ver - falou o rei de Vilmord - Mas não que o próprio rei de Farl era um deles.
- Culpa minha - respondeu Bádlin - Esqueci de me anunciar.
Erik nada disse.
- Seu castelo é grande, senhor rei - continuou o anão - Poderia haver nele um espaço onde podemos conversar com mais… privacidade?
Erik pensou por um tempo.
- Sim, isso pode ser arranjado - disse enfim - Desde que o rei de Farl e seu companheiro não se importem em ser submetidos a uma revista.
O anão sorriu e abriu os braços.
- À vontade, senhor rei.
Assim Bádlin e Billi foram revistados, nenhuma arma foi encontrada (nenhuma que os vilmorianos conhecessem como arma) e os anões foram levados a uma sala pequena numa das partes mais altas do castelo, logo abaixo das torres. A porta era um tanto estreita e Bádlin reconheceu nela a madeira de carvalho-do-inverno, perfeita para abafar o som. Aquela devia ser a sala onde o rei tramava seus mais sórdidos planos. Havia uma única janela, também pequena, alta demais para que um anão pudesse olhar através, mas Bádlin sabia que ela se voltava para o penhasco rochoso que descia até a cidade.
- Meu avô mandou construir esta sala - disse Erik, enquanto seus guardas, do lado de fora, fechavam a porta.
- Hodgar, o Jovem? - perguntou o rei de Farl.
- Guror, o Impiedoso - corrigiu Erik - O filho de Hodgar.
- Impiedoso - repetiu Bádlin - De fato. Ouvi dizer que ele conspirou para assassinar o próprio pai.
- As más línguas dizem isso - o vilmoriano pareceu irritado - Hodgar foi morto pela febre.
- Tenho certeza que sim - sorriu o anão - E as más línguas são cortadas toda vez que dizem o contrário, não?
Erik não respondeu.
- Diga-me, senhor rei, o que Guror, o Impiedoso, teria feito em relação ao ultraje dos elfos?
Aquilo mudou a expressão de Erik. Olhou para Bádlin como se sua cabeça fosse uma bola de cristal que mostrasse Zádia queimando. E os olhos do vilmoriano brilhavam junto com o fogo; brilhavam de ira, brilhavam de satisfação.
- Ele os mataria - respondeu - Mataria todos.
Bádlin sorriu outra vez.
- Foi o que pensei. Mas e quanto a você, senhor rei? O que estaria disposto a fazer para vingar aqueles seis mil homens mortos de forma tão covarde em Lundeburg?
- Nada menos que meu avô - disse ele, ainda olhando Bádlin daquela forma intensa, quase como se ele próprio fosse um elfo.
O anão puxou uma das três cadeiras dispostas diante da mesa do rei e se sentou, esticando as pernas preguiçosamente enquanto encostava a cabeça no luxuoso acolchoamento. Billi pareceu nervoso, provavelmente pensando que Erik consideraria um insulto o fato de Bádlin ter se sentado sem ter sido convidado, enquanto o próprio Erik, senhor do castelo, da cidade e do reino, permanecia em pé. Talvez Billi estivesse certo, mas quem se importava? Bádlin olhou novamente para o vilmoriano.
- E se eu lhe dissesse que há uma maneira?
- Uma maneira de que? - perguntou Erik, cauteloso.
- De destruir Zádia, é claro - respondeu o anão - Sente-se, rei - acrescentou, indicando a cadeira do monarca do outro lado da mesa - Vamos falar de negócios.
Erik acatou a sugestão. Billi, parecendo aliviado, também se sentou.
- Você certamente já ouviu falar da inimizade entre meu povo e os zadianos - disse Bádlin. Erik assentiu. O anão continuou: - Também já deve ter ouvido falar dos nossos… como vocês chamam?... “monstros de ferro”. Aqueles mesmos que por pouco não transformaram seu país em ruínas fumegantes e ossos triturados.
- E que foram esmagados por nossas montanhas - completou Erik, fazendo aquilo soar como uma ameaça.
- Sim, uma história triste para o povo de Farl. Mas voltando a Zádia, todos sabemos que aqueles elfos não possuem a dádiva das montanhas, de modo que nós, farlianos, já deveríamos ter reduzido sua floresta idiota a pó séculos atrás, não?
Bádlin fez uma pausa. Sorriu de um jeito maroto enquanto olhava para Erik.
- E por que não o fizeram? - perguntou o vilmoriano, claramente sem clima para brincadeiras.
O anão suspirou e foi direto ao ponto:
- A floresta os protege. Não estou falando daqueles poderes estúpidos que eles têm sobre a terra, fazendo-a balançar e conjurando raízes espinhosas que consigo cortar com um facão mal afiado. Ali, em Zádia, a coisa é diferente. Meu povo chama de “o Clarão”. Aconteceu todas as vezes que meus ancestrais, por um surto de idiotice que graças aos deuses ainda não me acometeu, atacaram a maldita floresta. O último idiota foi meu bisavô. Ele morreu na luta, se é que posso chamar aquilo de luta, mas alguns de seus guerreiros escaparam. Todos ficaram meio loucos, mas quando loucos descrevem uma cena com as mesmas palavras, você se vê obrigado a dar algum crédito. “Primeiro foi o som”, diziam eles. “Um som horrível, como se as árvores estivessem gritando. Depois veio o Clarão. Disparamos com nossas metralhadoras, lançamos nossos mísseis, atiramos com os morteiros, mas o Clarão continuou crescendo, continuou vindo em nossa direção.”
Erik tinha uma expressão de dúvida, certamente se perguntando o que eram mísseis e metralhadoras.
- “O Clarão nos cegou por um tempo.” - continuou Bádlin - “Quando voltamos a enxergar, tudo estava destruído. Todos mortos. Todo o exército de Farl. Todos eles, menos nós. Fomos poupados pela Mãe, para que pudéssemos dar este aviso”.
Erik mais uma vez mostrou dúvida.
- A Mãe? - perguntou.
- Namnel, a Mãe. A criadora do mundo, segundo os elfos. Uma vaca tirana, segundo os síneos. Talvez os dois estejam certos, não? - Bádlin sorriu, divertido.
Mas Erik permaneceu sério. Ainda estava meditando sobre as palavras dos anões meio loucos, ou então imaginando se a Mãe dos elfos era de fato uma vaca.
- Senhor rei - chamou Bádlin, trazendo o vilmoriano de volta a realidade - Com ou sem a Mãe, posso lhe garantir que o Clarão dos elfos possui uma fraqueza: ele acaba. Meu ancestral descobriu isso. Tálin, o Ousado. Isso foi antes de meu bisavô. Como ele, o pai de Tálin tinha merda no cérebro e decidiu atacar Zádia. Foi trucidado, é claro, mas Tálin levava um segundo exército, com o qual teria lutado e morrido junto com o pai, se não tivesse se atrasado. Tálin, o Presente, era como o chamavam, ironicamente, antes de ele se tornar o Ousado. Então o Presente se atrasou, chegando a Zádia apenas a tempo de ver o exército de seu pai destroçado na descida do vale. Isso o encheu de uma fúria louca. Em vez de fugir apavorado, como qualquer ser sensato teria feito, ele também atacou. E adivinhe? Nada de Clarão. Nada de árvores gritando ou anões ficando cegos. Os elfos usaram suas flechas e suas raízes idiotas para se defender. Se Tálin tivesse guerreiros o suficiente, teria estripado cada criatura de Zádia naquele dia. Mas seu exército era pequeno, de modo que as flechas e as raízes foram o bastante para dizimá-lo. Tálin morreu naquele ataque.
Mais uma vez, Erik estava pensativo. Com os cotovelos apoiados na mesa e as mãos unidas sob o queixo, parecia estar rezando, mas ele não aparentava ser um homem religioso. Graças aos deuses.
- Se tomarmos como verdade essa lenda de Tálin - disse enfim o vei de Vilmord, mas foi interrompido por Bádlin:
- Não é lenda. É História. É fato.
- Que seja - Erik fez um gesto impaciente na direção do anão - A conclusão a que você chega, rei de Farl, é a de que o melhor meio de destruir Zádia é sacrificar um exército para que outro possa atacar?
Bádlin sorriu. Erik não era burro.
- É o único meio - respondeu o anão.
Erik o olhou quase com ódio.
- Então sacrifique o seu - disse - Leve uma horda de farlianos com metralhadoras e mísseis para ser trucidada pelo Clarão. Depois eu chego com meus vilmorianos e ponho a floresta abaixo.
E agora, pensou Bádlin com tristeza, Erik havia soado como o mais burro dos homens.
- Não se esqueça, senhor rei, de que não foram mais que duzentos elfos que os massacraram em Lundeburg - explicou o anão pacientemente - Agora imagine o que mil elfos podem fazer.
Erik engoliu seco. Bádlin sorriu. Billi parecia desconfortável na cadeira.
- Você não pode vencer os elfos - continuou o farliano, ainda sorrindo - Mas eu posso. Possuo as armas para isso.
Dito isso, ele enfiou a mão nas dobras da capa de viagem e tirou de lá o pequeno dispositivo. Para Erik devia parecer uma caixa; um pequeno porta-joias de aspecto estranho, mas mesmo assim ele recuou. Levantou-se de súbito e recuou.
- Knias! - gritou.
- Irmão, o que… - começou Billi, já tendo se levantado também, mas foi interrompido pela porta sendo aberta com um estrondo e três guardas reais adentrando a pequena sala, rápidos como doninhas, apesar de toda a armadura. Um deles puxou o rei para fora enquanto os outros dois erguiam as lanças na direção de Bádlin.
O rei de Farl riu. Riu de puro divertimento. Billi, desesperado, havia recuado para longe das lanças, mas Bádlin as olhava com desprezo. Abriu a caixinha.
- Se eu apertar isso aqui - indicou o botão detonador - esta sala inteira explode. Pensem nesta caixa como um barril de pólvora em miniatura, mas com um poder de destruição pelo menos duas vezes maior.
Agora os guardas estavam com medo. Havia mais uns dez lá fora e mais chegavam correndo. Erik, já longe o bastante da porta, encarava o anão. Bádlin, ainda sorrindo, estendeu o dispositivo em sua direção.
- É um presente, senhor rei. Uma demonstração de boa vontade, digamos assim. Pegue-o. É seu.
Mas o rei de Vilmord não se mexeu. Bádlin suspirou outra vez.
- Vou deixá-la aqui - disse, colocando o objeto sobre a mesa - Pegue-o quando tiver coragem. Estude-o se quiser. Apenas não tente desmontá-lo e, pelo amor dos deuses, não aperte o botão vermelho, a não ser que queira explodir tudo ao seu redor. Agora, se me der licença, tenho uma longa e desagradável viagem de volta a Farl. Gosto de viajar, veja bem, mas estou ficando velho e minhas costas doem.
Erik nada disse e nenhum guarda saiu do caminho. Lanças ainda barravam a passagem de Bádlin. O anão deu de ombros.
- Por mim tudo bem se Sua Majestade nos quiser ter como hóspedes por mais um ou dois dias. Uma semana, quem sabe? Há muitos dos famosos prazeres de Vílerath que eu ainda não provei.
E assim foi. Não uma semana, mas seis dias os dois anões passaram sendo hóspedes-prisioneiros de Erik. Comeram e beberam à vontade - e dessa vez Billi não bancou o cauteloso. Passearam pela montanha, conheceram as partes subterrâneas da cidade e visitaram os famosos puteiros, os quais, para o prazer de Bádlin, faziam total jus ao renome. Foi na Rosa de Sedila, o mais caro desses bordeis, que ele conheceu outro anão. Fargost era seu nome; um nome típico do körd de Nilb, mas Fargost vinha do Sul, das terras jínadas, e não fazia ideia do körd ao qual sua família pertencia. Bádlin o achou desinteressante após saber disso.
Finalmente, no sexto dia, Erik os deixou partir.
- Há uma coisa que não entendo - disse ele a Bádlin. Estavam reunidos, o rei de Vilmord e os dois farlianos, outra vez na salinha de conspirações de Erik.
- Há muitas coisas que vocês humanos não entendem, senhor rei - retrucou Bádlin, ofendendo-o muito educadamente. Erik ignorou isso.
- Se os elfos podem nos dizimar com raízes e flechas - continuou - por que usariam o Clarão para nos destruir?
- Não usariam - respondeu o anão - Não em circunstâncias normais. E quando você atacar, senhor rei, acredite: as circunstâncias não serão nada normais.
Erik fez um muxoxo. Caminhou até a pequena janela do cômodo, de onde podia observar sua cidade.
- O que o faz pensar que eu aceitei sua proposta, rei Bádlin? - perguntou, ainda olhando através da janela.
O anão sorriu.
- Você aceitou?
- Não - disse Erik com firmeza.
- É uma pena - Bádlin fingiu desapontamento - É realmente uma pena. Mas o presente fica aí - ele indicou a caixinha sobre a mesa - Se tiver que usá-lo, lembre-se: após apertar o botão você terá uns dez segundos antes que a coisa toda exploda. Use-o com sabedoria, rei Erik. E  com cuidado, acima de tudo. Agora, se me der licença, tenho aquela viagem dolorosa a fazer. Passe bem, rei de Vilmord.
E com essas palavras os dois farlianos se despediram de Erik. Horas depois, já na estrada, escoltados por uns vinte vilmorianos, os anões voltaram a falar em sua própria língua.
- E agora, o que acontece? - perguntou Billi.
- Esperamos, é claro - respondeu Bádlin - Erik demorará um bom tempo até reunir um exército decente. Esses humanos são lentos para tudo.
- Acho que meu ynish está um pouco enferrujado. Pensei ter ouvido Erik falar que não tinha aceitado nossa proposta.
Bádlin riu.
- Ah, mas ele aceitou. Não sabe ainda, mas aceitou.
O vilmoriano grisalho ainda os olhava com aquela cara de merda. Como era mesmo seu nome? Ráfon? Rafard? Bádlin não se importava. Talvez, pensou, o velho idiota fosse um dos sacrificados em Zádia.




Capítulo XIII

O sol havia brilhado durante semanas, dando a Vilmord uma temperatura mais agradável, mas agora as nuvens escuras tinham voltado. Era chuva, sabia Fargost, e não neve, mas ficar ensopado nas montanhas não era uma ideia que lhe apetecia. Graças aos deuses já estavam longe de Vílerath. Não que ele não tivesse gostado da cidade. Os prazeres que no Sul eram condenados à clandestinidade em Vilmord eram financiados pelo Estado.
Fargost estava satisfeito consigo mesmo. Havia cumprido mais uma missão com sucesso. A carta de Erik, devidamente assinada e lacrada com o selo real, estava num dos bolsos de seu casaco. O acordo estava feito. Arslan, o poderoso sultão jínada e regente do Império, senhor de Fargost, ficaria contente.
Estavam agora na pequena cidade de Haltsberg, situada no ponto mais meridional de Vilmord, aos pés das Montanhas Negras. Hassan e os demais sorriam de orelha a orelha, felizes por estarem pisando numa planície outra vez. Ali embaixo estava quente até mesmo para padrões sulistas. Não havia vento e o terreno verde estava pintalgado dos tipos mais diversos de flores. Uma genuína paisagem primaveril. Dali para o sul estendia-se o vasto reino da Teutônia, antigamente o mais poderoso do Norte, agora submetido a Vilmord.
- Vocês têm certeza de que não querem um barco? - perguntou Erik mais uma vez.
- Eu tenho certeza, Majestade - respondeu o anão - Não posso dizer o mesmo dos meus homens, mas a opinião deles não importa.
Erik sorriu.
- Medo das águas, senhor Fargost?
- Como todo anão. Especialmente de águas inóspitas como as do seu Lago de Gelo.
- O Lago não estará gelado nessa época do ano. E ficará mais quente conforme vocês seguirem para o sul. Os chevaliers não são grandes navegadores, eu sei, mas nós os ensinamos a construir barcos decentes.
- Mesmo assim me sentirei mais seguro tendo terra firme sob os pés.
Erik assentiu.
- Entendo. Recebemos notícias de eslavos invadindo os Reinos da Divisa. É por isso que me preocupo. E se os aramatti souberem o que está carregando…
- Não creio que um lago seria obstáculo para os aramatti, Majestade.
- Não, é claro que não. Muito bem. Enviarei uma escolta, senhor Fargost. Trezentos homens de minha própria guarda.
Então era por isso que Erik havia trazido tantos homens consigo. Devia haver uns quatrocentos ali. Não mais que cinquenta knias, reforçados por um número sete vezes maior de soldados comuns, espadas juramentadas à Casa Ultren. O rei de Vilmord, ao que parecia, estava tão ávido pelo selamento daquele acordo quanto o sultão.
- Serei eternamente grato, Majestade - disse Fargost.
Erik sorriu mais uma vez.
- Eu também, meu caro amigo. Eu também.
Os dois se abraçaram, Erik tendo que se abaixar, e então os serviçais chegaram com os cavalos. Quarenta e nove cavalos sulistas, mais esguios, porém mais rápidos - e na opinião de Fargost mais bonitos - que os robustos cavalos nórdicos. E, é claro, o pônei Tegg. De todos os animais, apenas ele era adequado para as estradas íngremes das montanhas, mas Fargost preferiu poupá-lo do esforço, deixando-o em Haltsberg junto com os cavalos de seus homens. Havia uma quantidade imensa de pôneis em Vilmord. Os cavalos eram abundantes nas partes baixas do reino, mas lá no alto os pôneis e as cabras montanhesas predominavam.
- Você chegou a conhecer meu primo Ródrion? - perguntou Erik.
- Sim - respondeu o anão - Recém-nomeado guarda real de Sua Majestade, pelo que ouvi falar.
O primo loiro de Erik, tão alto quanto ele mas duas vezes mais largo, estava à frente dos knias. O uniforme azul, muito mais rico e adornado que os dos soldados comuns, havia lhe caído bem. Ródrion, belo, alto e forte, era o tipo de homem que nunca precisaria ir a um bordel. Fargost quase sentia inveja.
- Creio que já lhe dei os parabéns, não?
- Sim, senhor Fargost - respondeu um animadíssimo Ródrion. Devia estar empolgado com a primeira missão.
- E o senhor comandará a escolta? - perguntou o anão.
- Comandarei - respondeu o primo do rei, transbordando de orgulho.
Fargost olhou para Erik. Não fez questão de disfarçar sua apreensão. Ródrion podia ser forte como um touro, mas ainda era um moleque. Devia ter o que, dezoito anos? Dezenove no máximo.
- Ródrion tem se mostrado um guerreiro extremamente capaz - explicou Erik - Um dos melhores que já vi! E aprendeu a comandar homens.
“Aprendeu a comandar recrutas com espadas de madeira no pátio do castelo”, pensou Fargost, mas nada disse.
- E Halfdan irá com ele - acrescentou Erik, indicando um homem tão corpulento quanto seu primo, embora mais baixo, com uma horrenda cicatriz que cruzava seu rosto na diagonal. Enfim um veterano de guerra. O rei de Vilmord não era idiota.
- Ótimo - sorriu o anão - Vejo que estarei em boas mãos.
Halfdan apenas assentiu lentamente. Seu olhar lembrava muito o de Guror, avô de Erik; o olhar de um homem que ninguém gostaria de ter como inimigo.
Fargost olhou para cima. Não gostava nada daquelas nuvens escuras; não estando no Norte. O verão estava perto do fim, então a tendência era piorar. Não havia tempo a perder.
- Devo me apressar, Majestade - disse o anão - Será que os homens de sua nobre Casa estão prontos?
- Tão prontos quanto poderiam estar - respondeu o rei.
- Então devemos partir. Que os deuses lhe concedam um reinado enérgico como o de de seu pai, respeitado como o de seu avô, justo como o de seu tataravô e longo como o de Salahadin da Jinádea. E que uma nova era de prosperidade atinja tanto o Norte quanto o Sul.
- Assim será, senhor Fargost.
Abraçaram-se outra vez e a comitiva sulista, agora escoltada por trezentos vilmorianos, iniciou sua longa viagem de volta ao lar.





Capítulo XIV

- Isso é ridículo! - disse o earl Úgor - Como vocês podem considerar essa possibilidade? Uma ideia dessas não deveria nem ser posta em votação!
Estavam todos nervosos. Não era para menos. Os earls e grão-clérigos compareciam pessoalmente ao Conselho no máximo uma vez por ano, sendo no resto do tempo representados por parentes ou subalternos, mas a proposta de Erik era tão absurda que quase todos estavam ali outra vez, apenas dois meses e meio após a coroação.
- É a Voz do Rei - explicou Rikbald, o Clérigo do Rei, com autoridade - Não há como não por em votação.
Erik sorriu satisfeito. Rikbald estava se tornando uma de suas melhores peças.
- O rei passou por momentos difíceis em Lundeburg - teimou Úgor, não sem um notável tom de deboche - E foi recentemente atacado por anões, segundo ouvi dizer. Talvez seja mais sensato esperar que Sua Majestade descanse um pouco mais e coloque as ideias no lugar antes de fazermos votações.
Todos olharam para Erik. E ele para Úgor.
- Minhas ideias estão em seus devidos lugares, earl. Obrigado pela preocupação - ele olhou então para o resto do Conselho - Senhores, eu não os teria chamado aqui novamente se não fosse por um bom motivo. Confesso que a proposta que apresentei é um tanto… revolucionária. Difícil de digerir para alguns. Eu compreendo. Confesso também que existe um risco.
- Há vários riscos - opinou o earl Ruffus, sogro de Erik, tão carrancudo quanto Úgor - Todos grandes demais.
- É absurdo - ajudou o velho earl Sverri de Nordenheim.
- Existe o risco - retomou Erik - de os nobres senhores que compõem este Conselho não terem a força necessária para manter as rédeas nessa nova situação.
Todos os earls e seus representantes o olharam com ódio verdadeiro. Todos, menos Ralf, que apenas soltou um risinho.
- Levando isso em conta - continuou Erik - talvez seja realmente melhor não votarmos. Temo que este Conselho não seja hábil o bastante para controlar suas próprias colônias.
- Desde que elas permaneçam desarmadas, somos muito hábeis - rebateu Tuomas de Askaheim, neto de Aldgan.
- Tarefas fáceis para homens pouco capazes - devolveu o rei. Aquilo foi como um soco na cara pálida de Tuomas. Erik adorou. Se olhares pudessem matar, o futuro earl de Askaheim teria transformado o rei em pó naquele instante.
- Ainda não entendi quais seriam as vantagens de sua proposta, Majestade - disse Ruffus.
- Não é óbvio? - tornou Erik - Um exército maior. Logo chegará o tempo em que teremos conquistado tanto que as legiões não serão suficientes para manter a paz. Então por que não deixar que as próprias colônias nos auxiliem nessa tarefa?
- Porque nos esfaquearão pelas costas assim que as armarmos? - sugeriu Ruffus.
- Os reis e seus sonhos de conquista - escarneceu o velho Sverri - Já não temos o bastante? Teutônia, Áskar, Magyar, metade de Chevaliôn, boa parte de Kert e um pedaço da Eslávia. Sua Majestade ainda quer mais?
Erik ignorou Sverri. Olhou para Ruffus.
- Só seremos esfaqueados se formos tolos o bastante para isso. As colônias nos servem bem, earl. Mão-de-obra, ouro, matéria-prima. Mas isso ainda é pouco perto de tudo o que podemos conseguir.
Úgor abriu a boca para mandar alguma objeção indignada, mas foi interrompido por Uller, primeiro grão-clérigo a falar durante toda a reunião.
- E quantos estrangeiros você teria em cada legião, Majestade?
- Dois mil homens - disse Erik.
- Absurdo - falou novamente o velho Sverri, balançando a cabeça.
- Inaceitável! - exclamou Úgor.
E de repente todos os earls estavam protestando. A não ser Ralf, que parecia se divertir com tudo aquilo.
- Silêncio, senhores! - exigiu Erik  O falatório continuou.
- CALEM AS BOCAS!!! - rugiu o feroz Sven, sobrinho de Olaf, earl das Terras Costeiras. Ele era um dos indignados com a ideia do rei, mas estava visivelmente ávido pelo fim da reunião. De todos, Sven era o que mais detestava as reuniões do Conselho, embora vivesse em Vílerath justamente para participar delas no lugar do tio. - Fale, rei - grunhiu para Erik quando todos estavam devidamente calados.
- Vamos votar - disse o monarca.
Votaram. Os earls, naturalmente, foram contra a proposta de Erik. Todos, inclusive Ralf. Mal sabia ele que o próprio filho tivera grande participação em sua elaboração. Dos grão-clérigos, apenas dois votaram contra. O rei não deveria saber quais, uma vez que o voto era secreto, mas ele tinha Rikbald, que por sua vez tinha seus contatos dentro do Clero. Logo ele saberia. O próprio Rikbald, é claro, votou a favor da proposta.
Eram essas as Três Vozes que compunham o Conselho. A Voz dos Earls, a Voz do Clero e a Voz do Rei. Tendo o Clero votado com o rei, os earls foram derrotados. Duas Vozes eram mais fortes que uma.
As semanas seguintes foram conturbadas. Houve descontentamento entre as legiões, mas o Clero, a pedido de Erik, enviou pregadores a todos os cantos do império vilmoriano com a mensagem de que aquela era a vontade de Hózus, que todos os povos do Norte deviam ajudar a lutar por uma Nordgard unificada. Aquilo acalmou os ânimos. Graças aos deuses, pensou Erik, a fé no deus-sol estava tão entranhada no povo de Vilmord.
Rikbald estava por trás daquilo também. Convencera a esmagadora maioria do Clero a atender ao pedido do rei, assim como havia convencido seis dos oito grão-clérigos a votar a favor de suas propostas no Conselho. Sua reputação permitia isso. Rikbald era tido quase como um santo. Órfão de mãe e abandonado pelo pai, criado pelas Irmãs Santas nas Terras Costeiras, subira um a um os degraus do poder dentro do Clero. Chegou a ser indicado à nomeação como grão-clérigo, mas recusou, preferindo servir a Guror, avô de Erik, como Clérigo do Rei. Era um cargo de bem menor importância, o que para muitos era mais uma prova de sua humildade e santidade. Erik ria disso. Se conhecessem o velho Rikbald como ele conhecia, pensariam duas vezes antes de por uma auréola em sua cabeça. Não havia como negar sua extrema devoção ao deus-sol, tampouco seus atos de caridade e a eficácia de suas palavras de conforto a um pobre sofredor. Mas no fundo, bem no fundo, o que o movia era uma ambição gigantesca: ele queria ser pontífice. Tal cargo não existia em nenhum dos Cleros do Norte, sendo o grão-clérigo o ápice do poder, mas no Oeste, na República Laemoriana, todos os grão-clérigos estavam submetidos a um pontífice. Tanto o avô quanto o pai de Erik haviam falhado em satisfazer essa ambição, mas Rikbald não desistia.
“Vejo um imenso potencial em você, meu príncipe”, dizia ele a Erik desde quando ele podia se lembrar. O príncipe, agora rei, nunca duvidara da veracidade dessas palavras, embora suspeitasse que o potencial que Rikbald via nele era o de transformar seu santo sonho em realidade. Erik não o desapontaria, mas cobraria um preço. E Rikbald já estava pagando.
Três semanas após a votação, o Clérigo do Rei conseguiu uma terceira vitória para seu soberano. Erik havia pedido que ele lhe trouxesse os nomes dos dois grão-clérigos que não haviam apoiado suas propostas, mas Rikbald conseguiu mais do que isso.
- Uller e Igvar - disse ele.
- Interessante - respondeu o rei - De Uller eu já desconfiava. Mas Igvar? Ele sempre me pareceu opaco demais.
- Opaco, Majestade?
- Sem brilho. Sem opinião própria. Um peso a mais no Conselho, e apenas isso.
Rikbald sorriu.
- Um homem com tais características jamais teria chegado a grão-clérigo, Majestade.
- Então tenho que melhorar minha capacidade de julgar.
- Apenas um pouco, senhor. Igvar é de fato calado em demasia e seus votos dificilmente divergem dos da maioria, mas não pense que ele não tem seus próprios interesses.
- Todos os homens têm - Erik olhou de um modo divertido para seu clérigo.
- Naturalmente - Rikbald sorriu outra vez - Mas a questão é que Igvar, antes tão reservado em relação a suas opiniões, encontrou em Uller alguém em quem confiar. Alguém que compartilha seus temores.
- Temores?
- Ah, Majestade - o rosto de Rikbald assumiu um ar de tristeza - Quisera eu vir lhe anunciar que esses dois membros do Clero e de nosso Conselho rejeitaram suas propostas apenas porque elas, por alguma razão, vão contra o que eles consideram um jeito sábio de governar. Mas não, meu senhor rei. É bem mais do que isso. Eles o temem.
Agora Erik estava realmente surpreso.
- Também temiam seu pai, que Hózus o tenha - continuou Rikbald - E sem dúvida sentiam pavor de seu avô. Mas em você, ouso dizer, eles veem o mesmo potencial que eu vejo. E por isso temem.
Erik balançou a cabeça.
- Não faz sentido. Por que teriam medo de mim?
O clérigo suspirou.
- Porque, na visão deles, o rei trabalha para controlar o Clero.
Então era isso. Uller e Igvar tinham acabado de se tornar mais do que meros pedriscos no caminho de Erik. Eram agora duas montanhas; e se não pudesse transpô-las ele teria que derrubá-las.
- É uma opinião perigosa para se ter - disse o rei com ar lupino.
- Extremamente perigosa - concordou Rikbald - Felizmente foi compartilhada com poucos membros do Clero. Por enquanto.
- Então vamos estrangular o mal antes que ele se alastre. Há alguma chance de convencê-los a… mudar de opinião?
O clérigo pensou a respeito.
- Igvar, talvez. Uller? Não acredito que seja possível. Podemos amedrontá-lo, mas isso apenas adiará sua reação àquilo que considera uma ameaça ao Clero.
Erik assentiu.
- Chame Helgar para mim - pediu.
Rikbald se levantou e fez uma elaborada reverência. Andou até a porta, mas o rei o fez parar novamente.
- Rikbald - chamou. O clérigo o olhou. - Você fez um excelente trabalho. Como sempre. Mais uma vez lhe garanto que não se arrependerá.
O Clérigo do Rei mostrou o mais sincero de seus sorrisos.
- É sempre um imenso prazer servi-lo, Rei dos Reis.
Rikbald deixou a sala e dez minutos depois Helgar batia à porta. Erik se iluminou ao ver que ele trouxera Brunna consigo.
- Entrem - pediu, animado, antes de fechar a porta de carvalho-do-inverno.
Helgar foi se acomodar numa das cadeiras de frente para a mesa do rei, enquanto Brunna subia ao parapeito da janela. Ficou ali sentada, observando o primo com aquele seu sorriso travesso. Naquele dia ela usava um vestido da cor de vinho tinto. Os cabelos, vermelhos e rebeldes, estavam soltos como sempre. E também como sempre ela estava irresistível. Erik sempre ficava constrangido quando a desejava na presença do irmão, mas sabia disfarçar bem.
- Pelo sangue de Elbrus, desça daí imediatamente - pediu ele.
Brunna não obedeceu. Em vez disso, fez um movimento brusco para trás, como se fosse se atirar pela janela e se espatifar na Rua do Rei. O coração de Erik saltou ainda mais forte que no dia em que ele recebera a coroa. Sua prima riu, deliciada com o pânico em seu rosto.
- Maldição, mulher! - ele estava realmente irritado - Desça daí agora!
Ela apenas continuou rindo.
- Por favor, querida irmã, não faça nosso rei infartar já no primeiro ano de seu reinado - falou Helgar.
Ainda meio rindo, Brunna desceu do parapeito, fez uma pequena reverência zombeteira a Erik e foi se sentar num barril de vinho. Olhou em volta.
- Não há uma taça nesta sala lúgubre?
- Há canecas - disse o rei, ainda ríspido.
- Gosto de taças - teimou Brunna.
- Então vá buscar uma.
Erik odiava aquilo. Odiava quando ela o fazia se sentir idiota.
- Helgar - chamou ele, tentando ignorar Brunna, que, deitada no chão, colocara a boca sob a torneira do barril e a abrira - Tenho duas tarefas para você.
- Basta pedir - disse Helgar prontamente.
- Um certo grão-clérigo precisa ser substituído.
O primo de Erik ergueu as sobrancelhas ruivas.
- Uma medida tão radical? - questionou.
- Infelizmente sou obrigado a isso - respondeu o rei, então sentiu um arrepio quando as mãos de Brunna tocaram seu pescoço. Ela começou a massageá-lo.
- Quem? - perguntou Helgar.
- Uller.
Helgar pensou, depois assentiu.
- Pulso de mithril - disse Brunna, ainda massageando o pescoço e os ombros de Erik. Ele a olhou. - Me disseram uma vez que os senhores de Vilmord governam suas colônias com pulso de mithril - explicou ela - Pelo que estou vendo aqui, o mesmo vale para os problemas internos.
Aquilo era uma referência ao diálogo que Erik tivera com seu pai em Lundeburg. Helgar deu de ombros quando o primo o olhou pedindo explicações.
- Ela estava lá - contou.
- Você sabia? - Erik estava pasmo.
- Só soube quando passávamos pela Teutônia, no caminho de volta.
- Eu era o clérigo logo atrás de Ródrion, priminho - disse ela - Enganei todos vocês, bravos homens de Vilmord.
Erik nem se lembrava de que havia um clérigo atrás de Ródrion.
- Parece que minha irmãzinha possui um talento especial para se passar por clérigos - disse Helgar com um sorriso.
- Esse não é meu único talento - disse ela, voltando a massagear o primo.
Erik a imaginou vestida com o hábito de uma Santa Irmã. E imaginou a si mesmo metendo as mãos por baixo da saia daquele hábito.
- E a outra tarefa? - perguntou Helgar.
Erik lutou para afastar seus devaneios eróticos.
- Quero que contate seu amigo general - explicou ao primo - Lars, é isso?
- Sim. Era um dos cinco em Lundeburg.
- E posso mesmo confiar nele?
Helgar deu um meio-sorriso.
- Você não, primo. Mas eu posso. Ele me deve alguns favores.
Brunna soltou um risinho. Havia algum segredo ali que Erik desconhecia.
- Diga a ele que vamos empreender uma nova conquista muito em breve - falou o rei - E que a legião dele será uma das convocadas.
- Como quiser, Majestade - Helgar sorriu daquele seu jeito malicioso, como uma criança que estava prestes a aprontar a mais terrível de suas travessuras - Eu ouvi falar dessa nova empreitada. Volikast, não?
- Oficialmente, sim.
- E extraoficialmente?
Erik demorou um bom tempo para responder.
- Zádia - disse enfim.






Capítulo XV

- Estão se saindo realmente bem! - disse o capitão Bjorn com entusiasmo. Erik teria gostado de ver aquilo.
Brunna mostrou o mais doce de seus sorrisos. O capitão, hipnotizado, não conseguia tirar os olhos de seus lábios. Com certeza assim que ela virasse as costas ele olharia um pouco mais para baixo. O vestido verde jade que ela trajava não era especialmente provocante, mas aquilo era parte do truque. Muitas vezes, na arte da sedução, deixar que um homem use sua imaginação é mais eficaz do que mostrar o que ele quer ver. Não que ela tivesse qualquer motivo especial para seduzi-lo. Gostava de praticar, só isso.
- O rei ficará satisfeito - disse ela, fazendo a frase soar como uma promessa - Muito satisfeito.
Os olhos do capitão brilharam. Sua mente simples, sabia Brunna, acabara de trocar a imagem dela nua pela de Erik com um saco de ouro numa mão e uma patente de general na outra.
Gritos soaram abaixo deles, no campo de treinamento. Outra batalha se iniciava. Os recrutas, vindos de todos os cantos do império colonial vilmoriano, pareciam estar gostando. Com certeza o treinamento militar era muito mais divertido que um entediante dia de trabalho forçado. E estavam ali por vontade própria. A recentemente criada Lei do Alistamento Estrangeiro estabelecia que todo homem nativo das colônias, com idade entre quinze e vinte e cinco anos, tinha direito a se alistar nas legiões vilmorianas. Cada legião teria no máximo dois mil desses estrangeiros, o que elevaria o contingente de cada uma de cinco para sete mil homens.
- Há quanto tempo estão treinando? - perguntou Brunna.
- Desde que a lei foi decretada, senhora - respondeu o capitão Bjorn, agora tendo a ousadia de olhá-la de cima a baixo.
- Três meses - concluiu ela - E vocês têm dois mil aqui?
- Nenhum a mais e nenhum a menos - agora ele olhava fixamente para o amuleto de pedra do sol que descia até perto do decote de Brunna. Ela sorriu, imaginando que perversões se passavam pela mente daquele homem casado. Aquilo a fez pensar em Erik.
- E poderemos contar com esses dois mil no fim do outono?
A expressão maliciosa de Bjorn desapareceu imediatamente, dando lugar a uma cara de espanto.
- No fim do outono eles ainda estarão tão verdes quanto hoje, senhora.
- Verdes?
- Inexperientes - explicou ele.
- Então que lutem sua primeira batalha para adquirir experiência.
- Senhora - começou o capitão, mas não terminou. Talvez tenha decidido que não tinha argumentos, ou então imaginou o saco de ouro e a patente desaparecendo caso ele não cooperasse. - Faremos o possível - disse.
- Faça - respondeu ela, depois lhe ofereceu mais um de seus sorrisos encantadores e, para o deleite de Bjorn, virou as costas.
Enquanto descia da plataforma elevada, Brunna observou mais uma vez os recrutas. Ela não era a melhor juíza em questões de combate, mas de fato pareciam estar se saindo muito bem. Devia haver uns quatrocentos ali. Os treinadores, capitães Sihtric e Weland, auxiliados por uma dúzia de tenentes cujos nomes ela não fazia questão de saber, os tinham dividido em dois grupos e montado duas falanges que agora tentavam despedaçar uma a outra.
- Ele gostou de você - disse alguém ao lado de Brunna assim que ela terminou de descer da plataforma. Era Bóris. Ela fingira que não o vira chegando.
- Que homem não gosta? - retrucou ela.
- Ah, conheço alguns que não teriam o menor interesse.
- E eu conheço alguns que não conseguem pensar em outra coisa.
Ele recebeu a alfinetada com um sorriso. Pobre Bóris. Um homem bonito e extremamente inteligente, no vigor de seus trinta anos, de origem nobre, apesar de eslava. Era vassalo e braço direito de Ralf, pai de Brunna. Sua altura e a ferocidade de seu olhar lhe concediam um aspecto de extrema virilidade, apesar do corpo magro. Se ele tivesse um pouco mais de barba e o cabelo não fosse tão curto, ela poderia até ter se interessado.
- Só acho que uma coisinha bonita como você não devia andar por aí sozinha - disse ele.
- Por que devo me preocupar se tenho homens fortes como você para me proteger?
Bóris respondeu com um sorriso lupino. “Um dia hei de cobrar o preço por minha proteção”, era o que aquilo dizia. Talvez ela devesse contar a Erik. Mas o que ele faria? Era um homem sensato e cauteloso, ela sabia, mas os ciúmes de um rei, a julgar pela história da família Ultren, podiam explodir como um paiol de pólvora e mergulhar todo um reino nas chamas da guerra. Além disso, ela não suportava a ideia de ter Erik como inimigo de seu pai.
Ralf Alderson Hozmann, earl de Österheim, era um homem perigoso. Nem mesmo Brunna o conhecia direito. Helgar, que passava mais tempo com o pai, raramente falava dele. Naquele dia ele havia enviado Bóris ao Forte Donau, no extremo norte da Teutônia, para falar qualquer coisa ao capitão Bjorn. Provavelmente sua verdadeira missão era espionar o treinamento dos estrangeiros. Mandara Brunna junto, sem dizer exatamente o que ela devia fazer ali.
“Acompanhe Bóris e o auxilie no que for preciso”, ordenara ele simplesmente. Agora ali estava ela, tentando se manter tão distante de Bóris quanto os deuses permitissem. Naquele momento eles não estavam sendo muito complacentes.
- Vou me casar - disse ele de repente. Brunna nem tentou disfarçar sua sensação de alívio.
- Até que enfim! Em nome de Néa! Trinta anos e ainda solteiro! Cheguei a pensar que o senhor não estava interessado em fazer um herdeiro!
- Com você eu teria feito.
Ela não conseguiu não rir.
- Eu sei que teria - disse, ainda rindo - Mas não sou uma cadela no cio, criada para produzir filhotes da mais alta estirpe.
        Ao ouvir aquilo, Bóris a olhou de um jeito assustador. O símbolo de sua Casa era uma espada reluzente sobre um campo nevado, mas uma fera faminta teria sido mais adequado. Ele chegou mais perto. Muito perto. Brunna se lembrou do bracelete com a pequena lâmina retrátil, escondido sob a manga longa do vestido. Bóris estava na sua frente, forçando-a a parar.
        - Pois eu penso diferente, minha senhora - disse ele, o hálito quente cheirando a café - Eu penso que é sem dúvida uma cadela no cio; uma que tem escolhido cachorros estranhos para cruzar.
        Ela teve que se conter para não enfiar a lâmina em sua goela.
        - Cuidado, senhor Bóris - ameaçou ela - Não se esqueça de quem eu sou filha.
A tensão estava no ar. Os cinco guardas que os acompanhavam se entreolhavam sem saber o que fazer. Se a coisa partisse para uma agressão física, quem eles apoiariam? Estavam ali a serviço de Bóris, mas nenhum deles trajava as cores da Casa Ivanovich. Eram todos soldados Hozmann, soldados da Casa de Brunna.
O eslavo chegou ainda mais perto, para sussurrar em seu ouvido:
- O senhor seu pai tem sido complacente demais com a senhora. Fala de mim, mas aí está, no seu décimo sétimo ano e ainda solteira. Mas o que o earl faria se ficasse sabendo das aventuras notrunas de sua filha?
        Foi como se o chão se abrisse sob os pés de Brunna. Maldito Bóris. Mais do que nunca, ela desejou arrancar seu sorriso triunfante com uma lâmina bem afiada. A mão do bracelete tremia levemente.
        - A faquinha que ganhou de seu irmão não a salvará, minha querida senhora.
        Então até isso ele sabia. Brunna se xingou por dentro. Havia subestimado aquele homem sorrateiro.
        - Eu disse ao seu pai que queria sua mão - continuou ele - Como tantas outras vezes havia dito. Mas agora ele deu uma resposta diferente. Disse que vai lhe consultar a respeito.
Ele fez uma pausa, como se esperasse uma resposta, mas Brunna continuou olhando-o em silêncio. Imaginou-se na cama dele, esfaqueando-o no momento do prazer.
- Pense com muito carinho, cadelinha do meu coração - sussurrou ele por fim, antes de se afastar a passos tranquilos. Os cinco guardas o seguiram.
E Brunna ficou ali, sozinha, ouvindo os sons que vinham do campo de treinamento e imaginando como contaria aquilo a Erik sem causar uma guerra civil.




Capítulo XVI
- Uma notícia triste - disse Erik, mas, que os deuses o perdoassem, estava sorrindo por dentro - Ao menos me conforta saber que ele partiu em paz.
- Tranquilo como um passarinho - disse o clérigo - Havia até mesmo um pequeno sorriso em seus lábios.
“Então os assassinos de Helgar foram realmente bons”, pensou o rei.
- Fico feliz em saber disso. Uller foi um grande homem. Toda a nação vilmoriana sentirá sua falta. Agora, se me der licença, tenho algumas questões urgentes a tratar. Passe bem, clérigo. Desfrute da hospitalidade de minha Casa antes de partir. E, por obséquio, transmita minhas sinceras condolências ao Clero de Söderheim.
        - Transmitirei, Majestade - respondeu o clérigo com humildade.
        Erik foi encontrar Helgar. Queria falar com Rikbald antes; abraçá-lo e agradecê-lo, mas o Clérigo do Rei havia partido para Söderheim ainda antes do alvorecer, antes mesmo de Erik ter recebido a notícia. Muitos, se soubessem a verdade, chamariam Rikbald de hipócrita por ir prestar homenagem ao homem que ajudara a silenciar, mas essa seria uma classificação apenas parcialmente justa. O rei não tinha dúvidas de que seu clérigo passara as últimas horas antes da viagem em penitência, deitado de bruços no chão, com os braços abertos, talvez com o cilício em ambas as pernas e as costas marcadas pelo chicote. Não que Rikbald estivesse arrependido. O objetivo final de seu grande sonho, supunha Erik, era reformar o Clero para melhor. Mas para isso precisava de poder - e o caminho até o poder não pode ser trilhado senão com sangue nas mãos.
        - Ouvi dizer que o grão-clérigo Uller já não está entre nós - disse Helgar quando o primo chegou. Estava à porta da pequena sala particular de Erik, pontual como sempre.
        - Sim - disse o rei - Que o deus-sol o receba.
        Os dois entraram e os knias fecharam a porta pelo lado de fora.
        - E Ródrion? - perguntou Helgar enquanto se sentava - Alguma notícia?
        - A última coisa que eu soube foi que eles haviam chegado a Kalkária. Devem estar aproveitando os prazeres de Avara neste momento.
        - Prazeres de Avara? - Helgar soou irônico, com razão. Erik sorriu ao se lembrar de quando os dois tinham visitado a capital jínada, famosa por ser a cidade mais bela de toda Azálor. De fato, a beleza arquitetônica, a limpeza e a meticulosa organização do lugar os deixaram boquiabertos. Aos olhos, era sem dúvida a cidade mais agradável onde já haviam estado. Ficaram desapontados, no entanto, ao descobrir que não havia muito o que fazer ali a não ser admirar a paisagem. Sem as arenas de luta da Eslávia, os circos de aberrações de Magyar ou os bordeis de Vílerath, Avara era uma cidade linda, cheirosa e absolutamente entediante.
        - Tem razão - disse Erik - Já devem estar fazendo o caminho de volta.
        - Ansiosos por nossas cervejas e tetas, sem dúvida - acrescentou Helgar. Os dois riram.
        - Obrigado, primo - falou o rei de repente, olhando o outro firmemente nos olhos. Estava realmente comovido. - Obrigado por tornar meu sonho possível.
        Helgar pareceu achar aquilo divertido.
        - Por acaso seu sonho é o mesmo que o meu. E eu faço o que for preciso para tornar meu sonho realidade. Considere-se sortudo.
        Erik sorriu, se levantou e abraçou o primo. Depois foi até um dos barris de cerveja e encheu duas canecas.
        - Um brinde a Uller! - exclamou - E ao acordo com os jínadas!
        Agora o rosto de Helgar assumiu uma expressão sombria.
        - Você realmente confia naqueles sulistas?
        - Confio em Fargost.
        - O anão é um mero subalterno. Fará o que seu sultão ordenar. Mesmo que isso inclua esfaquear nossas costas.
        - Por que Arslan iria querer nos esfaquear?
        Helgar deu de ombros, tomou um longo gole e limpou a espuma da barba ruiva com as costas da mão.
        - Não é Arslan que eu temo. Segundo tudo o que li e ouvi a respeito dele, é um homem que nunca faltou à palavra. Mas ele está velho, Erik. Já passou dos setenta. E o filho mais velho está doente, mais morto que vivo.
        - E os mais novos?
        - São um bando de doninhas revoltadas às quais o pai nunca deu muita atenção. E cada um deles é pelo menos um pouco idiota. Mas o pior é o neto. Selim. Filho do filho mais velho. Um rapaz sonhador que, digamos, não tem muita simpatia pelos homens do Norte.
        - E você só me conta tudo isso agora, depois de eu ter aceito o acordo?
        Helgar sorriu e tomou outro gole.
        - Sinto muito, primo, mas você manteve seu acordo secreto escondido até mesmo da minha pessoa, caso tenha se esquecido. Contou-me há o que? Três dias?
        Erik assentiu.
        - Pensei que você descobriria de qualquer forma.
        Helgar ergueu as sobrancelhas.
        - Isso quer dizer que estou autorizado a espionar Sua Nobilíssima Majestade também?
        - De forma alguma. Faça isso e seus espiões perderão os olhos.
        Helgar riu.
        - Bom, é melhor nos apressarmos - disse Erik, se levantando. Esvaziou sua caneca e a colocou sobre a mesa. - Temos um Conselho para enfrentar.
- Você tem, primo.
Helgar soou pesaroso, como se estivesse se desculpando. Erik demorou uns bons segundos para entender.
- Seu pai está aqui outra vez?
Helgar balançou a cabeça.
- Por algum motivo, o senhor meu pai não me quis como seu representante no Conselho desta vez. E não só desta vez, temo eu.
- Então quem? - Erik estava pasmo. Brunna era uma mulher, o que a privava do direito de se sentar no Conselho, mas fora ela e Helgar os outros filhos de Ralf eram apenas crianças. E nos irmãos, sabia ele, assim como nos tios e sobrinhos, Ralf nunca havia confiado. Nisso se parecia com Ênor.
- O eslavo - disse Helgar - Bóris Ivanovich.
- Merda - disse Erik
        Uma hora mais tarde o Conselho estava reunido. Filhos, sobrinhos e netos representavam quase todos os earls. Rudolf, filho de Ruffus e cunhado de Erik, era um deles. Nikolaj, filho de Úgor e primo do rei, era outro. Como antecipara Helgar, o eslavo Bóris estava no lugar de Ralf. Apenas o velho Sverri, earl de Nordenheim, comparecera pessoalmente. Depois da polêmica Lei do Alistamento Estrangeiro, o velho decidira deixar o filho governando suas terras e se mudara para Vílerath, a fim de estar presente em todas as reuniões. “Com certeza o assunto de hoje o deixará ainda mais convencido de minha periculosidade”, pensou Erik com diversão.
No lugar de Rikbald estava o acólito Marcus, um voto garantido a favor do rei. Também os grão-clérigos eram representados ali por seus subalternos. Igvar, que conspirara ao lado de Uller, enviara o mesmo homem de sempre, um clérigo tão quieto e tímido quanto ele próprio. Erik ouvira dizer que Igvar se tornara obcecado com a própria segurança, mantendo-se rodeado de guardas até mesmo na hora de dormir ou defecar.
        - Nobres senhores - começou o rei - Quero informá-los de que nossos novos recrutas estão tirando ótimo proveito do treinamento, mostrando-se guerreiros potencialmente tão capazes quanto nossos legionários vilmorianos.
        - Com todo o respeito, Majestade, não é possível equiparar o cão sarnento ao lobo-das-montanhas - falou Nikolaj Úgorson. “É tão filho da puta quanto o pai”.
        - O cão pode ser extremamente útil ao lobo, se ele souber usá-lo - respondeu Erik - Imagine lobos que pensam. Não seria algo novo?
        Ele desejou profundamente que todos ali tivessem recebido suas farpas.
        - O cão só é útil como comida - opinou Théron Habsberg.
        - Devo supor que o senhor costuma comer teutões e chevaliers? - perguntou Erik - Isso seria em sentido alimentar ou sexual?
        Marcus, o acólito substituto de Rikbald, começou a rir para puxar o saco do rei, mas se desconcertou quando viu que ninguém o acompanhava. Théron respondeu à ofensa de Erik com um olhar que prometia retaliação.
        - De fato, nossos primos nórdicos nos alimentam bem - prosseguiu o rei, dirigindo-se a todos - Alimentam-nos, vestem-nos, lavam-nos. Mas a partir de agora farão bem mais do que isso. Eles lutarão em nossas fileiras. Eles nos ajudarão a unificar o Norte e tornar Nordgard o mais poderoso império do mundo atual. Sulistas, ocidentais e orientais tremerão ao ouvirem pronunciar o nome de nossa nação.
        O coração do rei estava acelerado. Teve que se conter para parar de falar. Já havia revelado demais de suas ambições.
        - Uma nação chamada Nordgard? - questionou Rudolf - Não Vilmord?
        - Sua Majestade tem sonhos estranhos - acrescentou Nikolaj.
        Erik suspirou. Realmente havia revelado demais.
        - Senhores, apenas enfatizei o bom desempenho dos recrutas porque acredito que eles estão quase prontos para serem testados.
        Aquilo, sim, chocou todos os presentes. Olhos arregalados, queixos caídos, trocas de olhares e palavras de indignação.
        - Quatro meses de treinamento e estão quase prontos? - perguntou, incrédulo, Tuomas Barth.
        - Sem querer ofender, Majestade, mas pensei que seu pai tivesse lhe dado alguma noção da arte da guerra - escarneceu Nikolaj.
- Contra quem deseja testá-los? - perguntou Rudolf. Mas ele já sabia. Todos sabiam.
- Volikast - disse Erik.
Nikolaj riu. Sverri olhou para cima, talvez pedindo ajuda aos deuses. Os demais se entreolharam e balançaram as cabeças. A não ser Bóris, que por algum motivo não tirava os olhos do rei. Os clérigos não apresentaram qualquer reação.
        - Levar um bando de serviçais mal treinados contra Volikast! - reagiu Théron Habsberg - Sua Majestade quer alimentar as aranhas, é isso?
- Quero propor também que enviemos seis legiões - continuou o rei, ignorando Théron  - Nona, Décima Primeira, Décima Quinta, Décima Sexta, Vigésima e Vigésima Primeira. Todas comandadas por excelentes veteranos.
        Outras vez os representantes dos earls trocaram olhares. Devia soar muito estranho o rei já ter uma lista das legiões que queria enviar. “Que os deuses me ajudem”.
        - Minha ideia - prosseguiu - não é efetivamente invadir o castelo. Vamos cercá-lo e bombardeá-lo; vamos transformar a vida daqueles homens-aranha num inferno e esperar que se rendam ou morram de fome.
        - Se é verdade que eles comem suas próprias aranhas, sua estratégia surtirá pouco efeito, Majestade - falou enfim o eslavo Bóris.
        - Então vamos disparar até que o castelo caia aos pedaços.
        Bóris sorriu.
        - Isso pode demorar um pouco.
        - Você já esteve lá, senhor Bóris? É uma coisa velha e malcuidada, pronta para desmoronar. Há buracos e rachaduras pelas quais um homem pode passar tranquilamente. Você consegue sentir o cheiro de mofo à distância.
        - Convidativo - respondeu o eslavo - Convidativo demais, eu diria.
        - Pois eu digo que a única defesa realmente formidável de Volikast é o medo que os homens têm daquele lugar podre - retrucou Erik - Medo. Nada mais que isso. No dia em que um exército juntar coragem e atacar aqueles muros arruinados, bastará algumas balas de canhão para que os homens-aranha corram para fora e dobrem os joelhos.
        - E então o que teremos conquistado? - perguntou Tuomas Barth - Ruínas e aranhas?
        - Sim, aranhas - disse o rei, olhando Tuomas daquele jeito que fazia seu avô, o earl Aldgan, se encolher na cadeira. Mas o neto, ao que parecia, era feito de material mais forte. - Aranhas - repetiu Erik - Imagine que maravilhas elas podem fazer, se usadas pelos homens certos.
        - São criaturas das Trevas, é o que digo - manifestou-se um dos clérigos.
        - Tão filhas de Hózus quanto nós - rebateu o rei - Criadas para um propósito. E que propósito seria esse, senão servir ao povo que irá levar a luz do deus-sol a todos os cantos ainda escuros de Azálor?
        Erik ficou satisfeito ao ver que alguns dos representantes do Clero assentiram em aprovação. Os deuses não o haviam abandonado.
        - Votemos - disse enfim o monarca.
- Proponho um adiamento - manifestou-se Sven das Terras Costeiras, mau-humorado como sempre. Erik já esperava aquilo. Assim como havia acontecido quando ele propusera a Lei do Alistamento Estrangeiro, os representantes dos earls pediriam que a votação fosse adiada, no que seriam apoiados pelos clérigos. Cartas seriam escritas, mensageiros cavalgariam e em algumas semanas earls e grão-clérigos estariam ali pessoalmente para votar. Erik sem dúvida estava se tornando um dos reis mais polêmicos de toda a história vilmoriana. Mais polêmicos e mais odiados. Sentia orgulho. Se os earls soubessem de metade de seus planos, o teriam esfaqueado ali mesmo, naquela sala.
No entanto, para a surpresa do rei, apenas Tuomas Barth e Théron Habsberg, além de seis clérigos, se manifestaram a favor do adiamento sugerido por Sven. Os outros, ao que parecia, já tinham instruções sobre como votar caso fosse proposto um ataque a Volikast.
A princípio, Erik havia pensado em esperar alguns anos para realizar o ataque, fingindo estar aguardando o amadurecimento das novas tropas. Com isso ele minimizaria as chances de levantar suspeitas, além de tornar a ideia de um ataque a Volikast mais palatável para os membros do Conselho. Mas o maldito rei anão o vinha pressionando. “Mande-o se foder”, sugerira Helgar. “Se quer tanto nossa ajuda, que espere.” Erik, porém, também estava com pressa. Acabara decidindo tentar naquele mesmo ano. Caso fosse derrotado nos votos, simplesmente tentaria outra vez no ano seguinte.
Mas o rei venceu mais uma vez. Uma vitória apertada. Os representantes dos earls foram todos contra. Do lado do Clero, cinco dos nove membros votaram a favor. Um voto a menos, apenas um, e Erik teria perdido.
        A decisão sobre que legiões fariam o ataque era algo mais complexo. Erik citou novamente as seis que havia escolhido e esperou que aqueles que as aprovassem erguessem as mãos. Apenas o acólito Marcus o fez, então a questão teve que ser posta em votação também. Mas antes os clérigos exigiram ter uma reunião particular, o que nem o rei e nem os substitutos dos earls podiam negar.
        - Gazelas traiçoeiras - Erik ouviu Sven sussurrar para Nikolaj, com quem conversava, quando os nove representantes do Clero haviam deixado a sala - São tão santos quanto a merda que solto em minha latrina todos os dias.
        Duzentos anos antes, quando Richard Ultren anexara o Clero ao Conselho Real em troca do apoio à sua coroa, fora estabelecido pela primeira vez em Vilmord o voto secreto. Era uma questão opcional, no entanto, sendo que pouquíssimos earls naqueles dois séculos tinham feito uso de tal possibilidade. Como típicos nórdicos, consideravam covarde e afeminado um homem que não mostrava o rosto para expor suas opiniões. Já os homens do Clero preferiam a discrição, anotando suas decisões em pedaços de papel que depositavam em urnas que em seguida eram abertas e conferidas.
        Bem mais de uma hora se passou antes que os clérigos estivessem de volta. Então, começando pelos representantes dos earls, cada um deu sua própria lista de seis legiões; sendo que os nobres o fizeram verbalmente, enquanto os clérigos optaram por depositar suas escolhas na urna. Por fim foram contadas quais eram as seis legiões com mais votos, sendo que em caso de empate era o rei que desempatava.
        - Nona, Décima Segunda, Décima Sexta, Sétima, Décima Nona e Vigésima Terceira - Erik anunciou as vencedoras. Apenas duas das suas escolhidas - Nona e Décima Sexta - tinham passado. Teria sido uma derrota, caso a Nona Legião não fosse comandada por Lars, o amigo de Helgar.
        - Acho que isso servirá - disse o primo ruivo de Erik ao saber do resultado, mas não parecia muito confiante. Estavam outra vez na sala particular do rei, agora com Brunna ao lado do irmão.
        - Se conseguirmos fazer com que os generais sigam nosso plano à risca, servirá - disse Erik, cansado. Seus ombros e costas ansiavam pelas massagens de Brunna.
        - O problema não é esse - respondeu Helgar - Lars pode parecer meio maricas, mas venceu mais batalhas do que a maioria dos outros, por isso é respeitado entre os seus. Ouso dizer que é quase tão influente na Legião quanto seu Rikbald no Clero.
        - Qual é o problema, então? - perguntou o rei, olhando para Brunna. Ela parecia estranhamente abatida.
        - Haverá um terceiro general - disse Helgar - Quais são as opções? Bertel, Torik, Egil e Kjell? Estou com as mãos atadas em relação a todos eles. Qualquer um que escolhermos terá que ser silenciado como Uller. Como conseguir isso a tempo e sem levantar suspeitas? Eis o problema.
        Erik assentiu.
        - Quanto a isso vou falar com o anão.
        - O rei de Farl? - Helgar pareceu surpreso - Vocês mantêm contato?
        - De que outra forma poderíamos sincronizar nossos planos?
        Helgar riu.
        - Vejo que está cheio de segredos, primo. Eu ia lhe perguntar como conversa o anão, mas acho que não é da minha conta.
        Erik estudou o rosto do primo por alguns instantes antes de responder.
        - Pombo-correio - disse enfim.
        - Tão simples?
        - Não os nossos pombos. Faz uns três meses, mais ou menos, que uma ave estranha apareceu aqui, nessa janela - ele apontou para a única janela de sua sala - Parece um pombo, mas é outra coisa. Um bicho que eu nunca tinha visto. E que bicho esperto! Já aconteceu de eu entrar aqui e ele estar escondido em meio aos barris, apenas esperando que eu me sentasse para pular sobre minha mesa. E só aparece quando estou sozinho.
        - Impressionante - disse Helgar, parecendo realmente impressionado.
        - Sim. Temos que ter cuidado com esses farlianos. Pode haver uma centena dessas criaturas espalhadas por aí, nos vigiando. Estou pensando em mandar fazer uma varredura por Vílerath. Talvez por todo o reino.
        - Se eles são tão espertos quanto você disse, isso adiantará pouca coisa. Mas se quiser eu posso cuidar disso.
        - Eu quero - disse Erik, levantando-se - E informe as boas-novas a Lars.
        - É claro - respondeu Helgar. Estendeu o braço para a irmã antes de abrir a porta.
        Brunna fez menção de dizer alguma coisa, mas parou. Lançou a Erik um olhar triste. Deu o braço ao irmão e os dois saíram para a noite.




Capítulo XVII
- Eu… Eu não sei o que dizer - Fargost estava pasmo - Majestade - acrescentou, curvando-se tanto quanto sua velha coluna permitia.
- “Obrigado” bastará, meu fiel amigo - respondeu o sultão. Talvez fosse o sentimento de gratidão, mas naquela manhã de outono Arslan da Jinádea parecia especialmente magnífico, com suas vestes rubro-negras e o prodigioso turbante. Aos XX anos, não parecia mais velho do que Ênor aos XX. No entanto, diferente do falecido rei de Vilmord, Arslan era um homem gordo, de barriga enorme e queixo triplo, embora esta última característica fosse bem escondida pela barba densa. De alguma forma, a corpulência do sultão lhe caía bem, como se condissesse com sua posição social. Seu rosto era gentil e paternal, mas se transmutava rapidamente numa carranca de ódio quando alguém ousava perturbar sua paz.
        - Muito obrigado, Majestade - Fargost sentiu os olhos se umedecendo - Que os homens cantem sobre sua generosidade até o fim dos tempos. Jamais houve na Jinádea ou em qualquer outra terra um soberano tão digno de sua coroa.
        O sultão fez uma cara de quem havia acabado de ouvir um absurdo.
        - Não diga bobagens! Nenhum homem é digno neste mundo de carne e pecado. Estou apenas recompensando um servidor leal por anos de trabalho bem feito. Uma recompensa tardia, eu diria. Mas você é um anão! Vocês baixinhos têm uma longevidade que nos dá inveja! Vai usufruir de meu presente durante muito tempo ainda.
        - Que os deuses o ouçam, Majestade.
        A casa era grande. Imensa, na verdade. Quase tão bela quanto o próprio palácio do sultão, cheia de colunas douradas e jardins que pareciam exibir todas as cores do mundo. E que perfume!
        - O Grande Hózus está de bom humor hoje - disse o sultão conforme eles adentravam a mansão, olhando para o céu limpo dominado por um sol quente o bastante para manter o outono agradável.
        - Realmente - concordou Fargost. Arslan sabia que o anão não tinha o deus-sol em grande estima.
        - E quanto a Sayid? Como ele se comportou?
        Fargost pensou muito bem antes de responder. Gostava de Sayid ainda menos que do deus-sol, mas o jovem era, por algum motivo, o amigo favorito de Selim, neto do sultão.
        - Comportou-se como um idiota - Fargost decidira não mentir - Falou absurdos sobre o Norte estar congelando e sobre os deuses repudiarem certas práticas comerciais de Vilmord.
        - Práticas comerciais?
        - Bordeis - explicou o anão.
        Arslan sorriu.
        - Lembre-se de que Sayid é um shariq. Nenhum outro povo em Azálor, nem mesmo os jínadas, ouso dizer, foi tão profundamente tocado pelo Grande Hózus. E é fato que o deus-sol repudia a prostituição.
        “Mas não os haréns dos sultões?”, Fargost se sentiu tentado a perguntar, mas achou melhor ficar quieto.
        - Mesmo assim - continuou Arslan - um homem em missão diplomática deve ter extrema cautela ao expor suas opiniões. Em algum momento ele chegou a pôr a missão em risco?
        - Graças aos deuses ele passou a maior parte do tempo trancado no quarto. E quando saía falava muito pouco, sempre em nossa língua. Ele não domina o ynish. E essa é outra dádiva dos deuses.
        O sultão balançou a cabeça.
        - Vocês são como dois filhos briguentos de uma mesma mãe. Pensam que se odeiam, mas cedo ou tarde terão que se unir para manter a família viva.
        - Se o destino me for bom, Majestade, seu nobre filho viverá tempo o bastante para que eu morra sem ver Sayid ser nomeado Conselheiro do Sultão.
        Arslan riu.
        Se Fargost ficara pasmo ao ver a mansão por fora, quase teve um troço ao inspecioná-la por dentro. Cada cômodo era maior que sua casa atual inteira. Dezenas de empregados, mais de cem guardas, um pequeno haras particular e uma ampla sala de banhos com água aquecida. O anão se sentiria um verdadeiro marajá.
        - Eu... Ainda não tenho palavras - disse ele ao sultão quando este havia terminado de lhe mostrar a casa - Que sua ilustríssima família reine sobre a Jinádea e sobre o Sul para todo o sempre.
        - Rezo pela mesma coisa, meu caro Fargost - respondeu Arslan, subitamente entristecido. Devia estar pensando no filho.
        Navid, primogênito de Arslan e herdeiro do trono jínada, sempre demonstrara ser um rapaz brilhante, mas de corpo doente. Sentira dores durante toda a vida. Mesmo os melhores médicos do Sul não conseguiam fazer mais do que reduzir a intensidade da dor. Quando o príncipe perdeu a capacidade de andar, o sultão se viu obrigado a apelar para a Ordem de Heliath, a deusa da cura, que não tinha boas relações com o Império Jínada havia mais de dois séculos. Mas a Ordem, alegando ter seus síneos ocupados, mandou apenas médicos comuns, o que enfureceu Arslan. Como seus ancestrais haviam feito, ele declarou que a Ordem estava banida dos domínios jínadas e que todas as suas atividades seriam consideradas ilegais. Finalmente, mesmo com toda a tensão, um síneo solitário da Ordem de Heliath chegou a Avara a fim de examinar o príncipe. Com um mero toque e uma breve oração acabou para sempre com as dores de Navid. “Nossos médicos teriam tido o mesmo sucesso, se Sua Majestade lhes tivese permitido trabalhar”, censurou o síneo antes de partir. O sultão ofereceu fortunas ao homem como recompensa, mas ele prontamente recusou. Tentou fazer uma doação à Ordem que também foi recusada.
Tudo se passara havia mais de uma década. Fargost entendia a lição de humildade que a Ordem de Heliath queria dar ao sultão, mas aquilo apenas tornara ele e toda a elite jínada ainda mais amargos em relação à deusa da cura e seus seguidores. Principalmente porque o agora adulto Navid, na glória de seus trinta e poucos anos, tivera o corpo curado, mas não a mente. Mergulhara num poço de melancolia durante os anos que passara preso à cama. Por algum motivo, a recuperação física não trouxera sua alegria de volta. A inteligência ainda estava lá, mas seus interesses se resumiam a poemas depressivos e estranhos textos que divagavam sobre o sentido da vida. Nem mesmo a mais nova esposa, uma das mais belas criaturas de toda a Jinádea, era capaz de tirá-lo daquele sofrimento.
- Ele quer viajar outra vez - disse o sultão de repente.
- O príncipe?
Arslan assentiu.
Aquela seria a terceira vez. Navid havia percorrido duas vezes toda a extensão de seu futuro império. De ambas as jornadas voltara mais animado, mas essa animação não durava mais que algumas semanas. Talvez o príncipe devesse passar o resto da vida viajando.
- Meus médicos dizem que ele está fraco demais - continuou o sultão.
- Para viajar?
- Para viver. Ele mal come. Mal deixa aquela maldita biblioteca.
Fargost tentava encontrar palavras de consolação, mas naquele momento só conseguia pensar em piscinas de água quente.
- Tenho fé que o Grande Hózus iluminará a mente dele antes de minha partida - continuou o sultão.
“Foi por causa do Grande Hózus que aconteceu a merda toda”, pensou o anão. De fato, toda a encrenca começara quase duzentos e cinquenta anos antes, quando o Clero Jínada, apoiado pelo sultão, acusara a Ordem de Heliath de necromancia pelo simples fato de usarem cadáveres em seus estudos.
- Sua partida ainda demorará muitas décadas, Majestade - disse Fargost.
Arslan apenas sorriu. Um sorriso triste. Fargost sentiu pena daquele homem, tão poderoso e ao mesmo tempo tão submisso a sua fé.
Duas horas depois, reunido com sua família em sua pequena casa no Distrito Nobre de Avara, o anão deu a notícia:
- Estamos ricos.
Todos o olharam em silêncio. Nyaring, sua empregada sudana, parou de varrer a sala.
- Já somos ricos - falou Hégert, um dos netos de Fargost.
- Ele quer dizer que ficamos ainda mais ricos, imbecil - reagiu Hulsuf, irmão de Hégert.
- Muito mais - disse Fargost, tendo a certeza de que seus olhos estavam brilhando, não de lágrimas, mas de desejo; desejo por piscinas aquecidas, colunas douradas e jardins perfumados. - Arrumem suas coisas. Vamos nos mudar.
- Hoje? - perguntou Ysyla, sua filha.
- Agora.
Naquela mesma tarde a família anã já estava instalada em seu novo lar. Ysália, esposa de Fargost, não parava de chorar. Sognor, Glegnor e Naelir, seus três filhos, juntamente com os cunhados, preparavam a carne para o banquete de comemoração. Estavam todos bêbados e felizes. Ysyla e Elina, as filhas, se ocupavam mudando tudo de lugar. Os netos de Fargost, todos os quinze, corriam como loucos pela vastidão da casa. Empregados iam e vinham carregando todo tipo de coisas. Os guardas, sérios e calados, pareciam parte da decoração. Fargost imaginou o que estariam pensando. “Como será a sensação de servir a um anão?”
Apenas Minira, sua filha caçula, não parecia empolgada. Ele a encontrou sentada sozinha num dos jardins. Estava lendo, para variar. Nesse aspecto, Minira era parecida com o príncipe Navid. No entanto, onde ele era tristeza ela era ódio. E nesse ponto se parecia com Sayid.
- Não sente o cheiro da carne? - perguntou Fargost.
- Não tenho fome - respondeu ela, sem tirar os olhos do livro.
- Uma guerreira precisa comer.
Ela o olhou com raiva. Talvez ele tivesse colocado um pouco de zombaria na voz. Não fora intencional.
Minira voltou a olhar para o livro.
- “Adegoke, o Vermelho” - ele leu o título - Um nome iorubá. Foi um guerreiro?
- Um rei.
- Ah, sim. Certamente chamado de “o Vermelho” pela quantidade de sangue que derramou.
Ela apenas assentiu, novamente sem desviar o olhar do papel.
- Diversos outros receberam esse mesmo epíteto, pelo mesmo motivo - continuou ele - Nenhum que eu me lembre teve uma morte tranquila.
- Mortes tranquilas são para idiotas.
- Eu desejo morrer tranquilamente nesta mansão. Sou um idiota?
Ela não respondeu.
- Então me conte a história de Adegoke, o Vermelho - pediu ele.
- Foi um rei de Ioba que matou muitos jínadas - disse ela, tão seca quanto possível.
- E você quer ser como ele? Quer matar jínadas?
Outra vez não houve resposta. Fargost balançou a cabeça. Por que Minira era tão difícil? Por que não podia ser como as irmãs? Quando pequenininha não fora diferente delas, mas por volta dos dez anos começara a se comportar daquele jeito esquisito. Nunca demonstrara interesse por namorados ou vestidos, preferindo passar metade do tempo lendo e a outra metade treinando com um machado. Agora, aos dezessete, parecia mais macho que fêmea. Naelir, o mais novo de seus irmãos, por muito tempo havia gostado de treinar com ela, mas desistira no ano anterior, após receber diversas surras.
Também fora no ano anterior que Fargost percebera o ódio em sua filha. Da mesma forma que Sayid tinha raiva dos nórdicos, Minira tinha de todos os humanos.
Tendo desistido mais uma vez de restabelecer o diálogo com ela, o anão se afastou entristecido.
- Pai - chamou ela. Fargost se virou. - Vou embora.
Ele nada disse. No fundo, sempre soube que aquele momento chegaria.
- Os homens do príncipe estão recrutando anões - continuou Minira - Pagam boa prata.
- Para fazer serviço braçal?
Ela deu de ombros.
- Aos olhos desses humanos, é só para isso que servimos.
“Nem todos”, pensou Fargost. Mas sua filha tinha razão. Ele era um dos pouquíssimos anões privilegiados com um cargo que não o de peão.
- Então o que você vai fazer? - perguntou ele - Carregar a liteira de Sua Alteza?
Fargost sabia que não deveria estar zombando daquele jeito. Nimira podia ser uma mistura de Sayid com o príncipe Navid, mas a verdade era que quem mais se assemelhava a ela era ele próprio na juventude. Teimoso, briguento, nunca se contentara com a vida servil e miserável de sua família. Fora graças a essa teimosia, somada a uma boa dose de sorte - ou favor divino - e a alguns atos dos quais hoje ele se arrependia, que ele chegara tão longe. Mesmo assim, sempre almejara um caminho melhor para os filhos. Sognor, seu primogênito, era um dos funcionários de confiança do Alto Magistrado, cargo que conquistara sem derramar uma única gota de sangue. Glegnor e Naelir haviam se estabelecido como comerciantes bem sucedidos no Distrito Nobre, tocando os negócios junto com os cunhados. Ysila e Elina eram ótimas mães e donas de casa.
Mas Minira não. Minira queria ter as coisas do seu jeito. Se tivesse a sorte do pai, acabaria aprendendo que às vezes servir é o único modo de ser livre. Se não, acabaria morta como tantos outros tolos aventureiros.
- Espero que encontre o quer que a faça feliz - disse Fargost.
- Já encontrei. Dentro de mim. Orgulho.
Ele assentiu.
- E para onde você vai? - perguntou. Mas ele já sabia.
- Para o único lugar onde um anão pode viver com dignidade - disse ela - Farl.



Capítulo XVIII
O outono estava perto do fim. Poucas folhas vermelho-alaranjadas restavam nas árvores secas da Floresta Teutônica. Em Zádia a situação seria outra. O Coração de Zad jamais deixava o verde morrer.
Leóffen colocou outra noz na boca. Pronto. Estava satisfeito. Cinco nozes e estava satisfeito. Sempre ficara abismado com a quantidade de alimento que os humanos ingeriam. Mesmo homens espiritualmente elevados como Dardan precisavam de uma quantia absurda de nutrientes para manter o vigor físico.
- Hora de ir - anunciou, pondo-se em pé. Seus cento e oitenta e seis companheiros estavam igualmente prontos. Laélia, solícita como sempre, ajudava Áneng a se sentar na liteira. Nebriniel, atingida no abdômen por um arcabuz vilmoriano, fora facilmente curada. Ainda sentia dores, mas já caminhava normalmente. Áneng não tivera a mesma sorte. Sua perna direita, quase decepada por um machado, tivera que ser amputada.
- Como está hoje? - Leóffen ouviu Laélia perguntar.
- Muito melhor que ontem - respondeu Áneng - E amanhã hei de estar ainda melhor! Graças à Mãe. E graças a você - ele pousou a mão sobre a dela, fazendo-a sorrir. Leóffen quase sentiu raiva.
- Vamos! - apressou. Prendeu o arco e a aljava às costas e as espadas ao cinto, recolheu a pequena bolsa de suprimentos e se adiantou para a frente do grupo. Viu Laélia sorrir uma última vez para Áneng antes de se afastar. A um gesto dela, os dois pequenos ents se puseram em movimento, carregando a liteira.
Enquanto esperava o grupo se organizar em colunas, Leóffen puxou o fino cordão de cabelo trançado que rodeava seu pescoço. O cristal, preso a ele, emergiu de debaixo de sua camisa. “Mãe, agradeço por mais um dia”, começou a orar. “Perdoe-me pelos momentos de fraqueza. Dê-me força para evitá-los; mas, quando ocorrerem, dê-me discernimento para transformá-los em aprendizagem.”
Raiva. Aquela era sua fraqueza. Raiva dos vilmorianos que ele matara sentindo prazer, raiva do tio que o expulsara, raiva de Áneng. Aquilo tinha que parar.
Vendo que finalmente as três colunas estavam organizadas, ele deu início à longa jornada. Encheu os pulmões com ar da Floresta Teutônica, não tão rico quanto o de Zádia, mas ainda assim mais agradável que o das planícies abertas. Lembrou-se do fedor de Lundeburg, capital da Ânglia. Se um dia o destino o obrigasse a viver entre humanos, teria que passar todo o tempo com tampões nas narinas.
Leóffen olhou com tristeza para os abetos e as faias. “Homens se aproximam”, dissera Beladriand, um dos batedores. “Lenhadores teutões e soldados vilmorianos.” Por isso eles eram agora obrigados a partir. “Pobre floresta”, pensou o elfo. Mais do que das árvores, sentia pena dos animais. A família de javalis que permanecera naquela área durante tanto tempo, nem um pouco incomodada com a presença dos elfos, teria que encontrar outro habitat ou seria dizimada pelos arcabuzes. A própria floresta, é claro, tinha suas armadilhas, mas nenhum predador era tão cruel quanto o homem. Porque eles acreditavam que precisavam se alimentar de carne era um mistério para Leóffen.
O grupo havia caminhado por três horas e meia quando Laélia se afastou da coluna. Estava indo tomar seu lugar entre os batedores. Ele esperou um bom tempo para segui-la. Deixou Éurian no comando e se embrenhou entre as árvores.
Encontrou-a quase uma hora depois. Sentada na grama com um texugo aninhado no colo, parecia o estar esperando.
- Precisa melhorar suas habilidades furtivas, Leóffen - disse ela com um sorriso.
- Acho que andei praticando demais com humanos e pouco com elfos - respondeu ele. Ambos riram.
Leóffen se sentou ao lado dela e acariciou e texugo. Por um momento os dois elfos se encararam sem nada dizer. Laélia era linda. Os cabelos, tão dourados quanto o próprio sol, faziam contraste com os prateados dele. Os olhos, quase da mesma cor, pareciam dois globos em chamas. Aquilo lhe dava um aspecto feroz, tornando-a ainda mais atraente.
- O que o traz ao meu posto de guarda? - perguntou ela enfim.
“Eu a quero. Aqui e agora. Quero tê-la mais uma vez.”
Mas ele não teve coragem de dizer as palavras. A verdade era que ela o amava. E era correspondida, mas por algum motivo a maneira de Leóffen amar não a satisfazia. “Você me dá seu corpo, mas apenas isso”, dissera ela. “Quero ser mais que uma fonte de carícias”. O que aquilo significava só Namnel sabia. Cansado de tentar descobrir, ele acabara caindo nos braços de Éurian. E fora ela quem tentara explicar. “Você só consegue enxergar Laélia abaixo de si, nunca ao seu lado. Só está realmente com ela nos momentos de cópula. No resto do tempo, seu corpo está lá, mas seu coração vagueia por sonhos. Sonhos de grandeza e vingança. Sua grandeza. Sua vingança. Esse é o problema de sonhar demais, Leóffen. É um caminho perigosamente solitário.”
O corpo de Éurian fora conforto o suficiente durante todo o verão. Até Laélia começar a se afeiçoar a Áneng.
- Admito, estou com ciúmes - Leóffen conseguiu dizer.
- De Áneng?
Ele assentiu.
- Quase cheguei a desejar que seu membro viril tenha o mesmo destino da perna.
Laélia riu. Aquilo era estranho. Alguma coisa em seu rosto fazia Leóffen se lembrar da mãe que ele conhecera tão pouco.
- Não foi o membro de Áneng que me cativou - disse ela.
Poderia aquilo significar que Áneng era pouco capaz? Agora foi Leóffen quem quis rir, mas se conteve.
- Pouco me importa que parte dele te cativou. Estou aqui para saber que parte minha te repeliu.
Como resposta ela apenas o encarou. O texugo em seu colo fez o mesmo. E então o momento foi estragado por Beladriand, que anunciou sua aproximação fazendo-se sentir através do cristal. Leóffen xingou em pensamento.
Beladriand não vinha sozinho. Uma figura encapuzada e vestida de negro o acompanhava. Laélia se levantou, obrigando o texugo a subir para seus ombros. Irritado, o animalzinho mostrou os dentes para o visitante encapuzado.
- Alegra-me ver que seguiu minha orientação e se manteve por perto - disse o recém-chegado. Era Fíneas.
Leóffen o cumprimentou com um breve aceno de cabeça. Não estava exatamente feliz em vê-lo, mas já não o tinha em tão baixa estima quanto antigamente. Laélia, que fazia questão de não disfarçar seu desprezo por Fíneas, nada disse ou gesticulou.
- Quando eu disse que Zádia precisaria de você em breve - prosseguiu ele - me baseei numa visão. Uma visão que eu e seu tio tivemos juntos. Uma visão que ele ignorou; e por isso agora sofre.
- Por tudo o que há de mais sagrado, fale de uma vez o que você quer - disse Leóffen. Estava cansado de enigmas.
- Zádia está sob ataque - disse Fíneas - Seu tio não retorna do Sonho há dois meses. Está fraco. Humanos marcham em direção ao vale. Vilmorianos. Elenoth e Éslon assumiram o controle e pretendem abandonar a floresta.
Antes de a última frase ser dita, Leóffen não sentira nada de especial, a não preocupação pela saúde do tio. Mas agora ali estava ela outra vez. Raiva. Ela podia senti-la se espalhando; uma força revigorante que aquecia seu corpo com uma vontade nova. “Que a Mãe me perdoe.”
- Vou matar cada criatura em Vilmord antes que isso aconteça - ouviu-se dizendo.
- Eu sei - respondeu Fíneas - É por isso que vim buscá-lo. Zádia precisa de sua espada mais afiada.
Leóffen olhou para Beladriand.
- Traga os outros. Diga que estamos voltando para casa.
- Infelizmente, não podemos contar com seus companheiros - inteveio Fíneas - Não há tempo. Dentro de poucos dias os vilmorianos estarão sobre o vale. Mas nós podemos chegar antes. Tenho transporte para dois.
- Que seja - respondeu Leóffen.
- Não - disse Laélia. Olhava de modo incisivo para Fíneas. O texugo em seus ombros voltou a mostrar os dentes.
- Não há outro modo, minha jovem - disse o elfo mais velho - A não ser que você esteja disposta a ter seu lar transformado cinzas.
Novamente a voz calma com que ele falava sobre morte e destruição perturbou Leóffen. Talvez fosse apenas impressão, mas parecia que Fíneas, por mais que se esforçasse para proteger Zádia, não sofreria realmente se a perdesse. Era como se ele fizesse parte de um jogo maior, no qual Zádia era apenas uma entre tantas outras peças substituíveis. Fíneas, parecia a Leóffen, era um sujeito incapaz de sofrer. Antigamente isso o fazia repudiá-lo. Agora lhe dava inveja.
- Você disse ter transporte para dois - retrucou Laélía - Eu vou com Leóffen.
Fíneas o olhou interrogativamente. Leóffen deu de ombros.
- Não conseguirei convencê-la do contrário - disse.
O elfo mais velho voltou a encarar Laélia, que manteve a postura desafiadora.
- Muito bem - cedeu ele - Apenas sejam rápidos.
Dito isso, Fíneas soltou um longo assobio que lembrava o grito de uma águia. Pouco tempo se passou antes que um som de asas distantes surgisse no céu.
- Pensei que seria um hipogrifo - disse Leóffen. Mesmo tão longe do alvo seus olhos de elfo podiam distinguir a criatura. Um draco.
Em poucos minutos a fera estava sobre eles. O texugo havia deixado Laélia e fugido apavorado floresta adentro. Não era de se espantar. Caso fossem racionais, os dracos seriam predadores ainda mais terríveis que os humanos.
- Que a Mãe os acompanhe - disse Fíneas, antes de se afastar junto de Beladriand.
A criatura finalmente aterrissou. Um dragão em miniatura, ainda assim quase tão grande quanto um elefante-das-Índias. Com agilidade espantosa, passou sem dificuldade por entre as árvores. Sua respiração era um rosnado. O bafo quente podia ser sentido à distância. Os olhos, da cor do fogo, lembravam os de Laélia. O corpo encouraçado, rubro como sangue, parecia tão resistente quanto as armaduras de aço dos humanos; embora para o poder da Mãe fosse tão frágil quanto papel.
Com as enormes asas abaixadas e o pescoço inclinado, o draco esperou obedientemente. Era estranho ver uma fera daquelas tão bem adestrada. Fíneas, ao que parecia, era tão cheio de habilidades quanto de segredos.
Enquanto Laélia hesitava, Leóffen subiu no lombo da criatura sem pensar duas vezes.
- Você vem? - perguntou ele.
Laélia assentiu. Aproximou-se nervosa, aceitou a ajuda da mão estendida de Leóffen e subiu no animal.
- Vamos - falou ela, sem soltar a mão dele. Estava tão apavorada quanto o texugo.
Mas Leóffen não. Sentia-se bem. Extremamente bem.
Porque em breve os homens de Vilmord seriam as presas e ele o predador.




Capítulo XIX
Ali estavam enfim. Zádia. Um lugar bem escondido, situado nos ermos que faziam a divisa entre Poláquia e a Síbria. Não estava nos mapas humanos. Mesmo assim, graças à estranha ave enviada pelo rei de Farl, haviam encontrado.
O terreno irregular daquela região não dava qualquer destaque ao pequeno conjunto de morros baixos que escondia a floresta. Diversos conjuntos similares se espalhavam pela área, como pequenas cordilheiras. Talvez cada uma guardasse um segredo. Aquela em que estavam, que por fora nada tinha de especial em relação às outras, certamente continha o segredo mais precioso. O vale, totalmente rodeado pelos morros, era amplo e profundo, de descida desconfortavelmente íngreme. Todo o seu interior plano era preenchido pela floresta. Estavam no fim do outono, de modo que a neve logo começaria a cair, mas as árvores de Zádia estavam tão verdes quanto as das florestas vilmorianas no verão.
De cima do morro, à beira da encosta, Erik olhava. Não havia qualquer indício da existência de uma civilização ali. Era dito que os elfos de Zádia moravam em árvores. Talvez fosse verdade. De onde estava, Erik só podia ver folhas.
- Daremos uma hora de descanso aos homens, Majestade - informou o general Lars em sua voz fina.
- Dê duas - disse o rei.
- Como quiser - tornou Lars, depois olhou sério para trás, para onde o exército vilmoriano começava a montar o acampamento - E quanto à bebida e as meretrizes?
No Norte era comum um exército em marcha ser acompanhado por uma horda de prostitutas. Os generais vilmorianos não tinham qualquer problema em relação a isso; na verdade eles próprios eram responsáveis por boa parte das meretrizes. No entanto, por questões de disciplina, nas horas que antecediam a batalha elas eram geralmente mantidas longe dos legionários. Da mesma forma, a bebida nesses momentos era expressamente proibida.
- Permita - respondeu Erik - Permita tudo.
- Mesmo para os estrangeiros?
O rei assentiu.
Lars saiu para transmitir as boas notícias. Não precisava da autorização do rei para tomar qualquer decisão ali. O ataque estava inteiramente nas mãos dos generais, sendo Erik um mero espectador. Adquirira com seu pai o hábito de acompanhar as legiões sempre que possível. No entanto, enquanto Ênor era frequentemente consultado pelos generais a respeito das estratégias a serem adotadas, seu filho não fazia mais que observar. Não tinha a experiência ou a reputação do pai. Ainda não.
Acima de tudo Erik sentia a falta de Helgar. O primo, receoso de que seu pai suspeitasse de suas tramas, decidira se afastar por algum tempo. Brunna também vinha se mantendo estranhamente distante. A presença de Ródrion teria sido algum consolo, mas a última notícia que Erik tivera dele fora que problemas no reinos ibéricos o forçaram a retornar de barco, através do Lago de Gelo. Isso já fazia dois meses.
- Talvez não seja sensato ficar tão próximo do vale, Majestade - disse Ulfric, o comandante dos knias. O rei sorriu. Ulfric estivera em Lundeburg, portanto vira do que os elfos eram capazes. Tentava agora, sem sucesso, disfarçar o medo.
Erik, por uma razão que ele próprio desconhecia, se sentia tranquilo em relação aos elfos. Talvez fosse a presença dos síneos; embora no fundo ele duvidasse de que aqueles homens eram síneos de fato. Trajavam belas armaduras e haviam exibido seus cristais brilhantes, que podiam muito bem não passar de mais um truque dos anões de Farl. Eram trinta homens. Na maioria brancos, possivelmente nascidos no Norte, mas havia dois orientais, um negro de Shalkai e uma quantia razoável de pardos vindos da Jinádea ou de Shariq. Um destes era o líder, um shariq de rosto soturno chamado Samir. Haviam se apresentado como membros da Ordem dos Guardiões. Erik questionara o rei de Farl a respeito daquilo, obtendo como resposta apenas “confie nos deuses.”
De qualquer forma, a presença de síneos - verdadeiros ou não - era exatamente do que ele precisava para convencer os homens a marchar. Sua única preocupação era que tudo seguisse conforme o planejado, de modo que as consequências do que ele estava prestes a fazer fossem totalmente contornáveis.
Até agora os deuses haviam sido generosos. A Nona Legião, comandada por Lars, assim como a Décima Sexta, liderada pelo pouco inteligente e extremamente ganancioso Derek, estavam entre as três enviadas para o oeste. Exatamente como Erik pretendera. A Sétima Legião, a terceira do grupo, tinha como comandante o general Egil, sobre quem Helgar e Lars não tinham nenhuma influência. Poucos dias antes da marcha, Egil fora convenientemente vitimado por uma forte disenteria, juntamente com boa parte de seus capitães. Um valioso presente do rei de Farl. O comando provisório da legião fora dado ao capitão Henrik, amigo próximo de Lars.
O plano era muito simples. Das seis legiões escolhidas para atacar Volikast, três deveriam cercar o castelo pelo lado leste e as outras três pelo oeste. As do último grupo, comandadas por Lars, Derek e Henrik, se desviaram do caminho e seguiram até a Poláquia, de onde a ave de Farl as guiou até Zádia. Sem dúvida havia um exército de emissários vilmorianos procurando por eles, mas o rei anão prometera cuidar disso também. Os problemas maiores viriam depois da batalha. Se tudo corresse de acordo com o plano, se os homens escolhidos para morrer morressem e os escolhidos para viver vivessem, esses problemas seriam drasticamente minimizados.
Para o alívio de Ulfric, Erik deu as costas ao vale e caminhou na direção do acampamento. Das duas horas de descanso, uns trinta minutos já haviam passado. Nuvens escondiam o sol e um vento gelado soprava. Somado a isso, o solo cinzento e infértil do morro e das planícies abaixo (a não ser dentro do vale) dava um aspecto desolador à paisagem.
No acampamento os homens se divertiam. Jogos de dado e disputas de queda-de-braço, cerveja e hidromel, prostitutas para todos os gostos. Os legionários deviam estar pensando que seus generais tinham permitido aquilo para lhes animar o espírito para o ataque, quando na verdade era um último presente àqueles que seriam enviados ao abate.
Vinte e um mil homens. Quinze mil vilmorianos e seis mil nativos das colônias. Destes últimos sobreviveriam apenas algumas dezenas; aqueles em que Erik e seus associados tinham certeza de que poderiam confiar. Uma história seria contada sobre aquela luta, descrevendo como os bravos vilmorianos e seus aliados desceram até o vale com tochas e líquido inflamável e atearam fogo à floresta, destruindo com isso a fonte da magia élfica. Os mortos seriam exaltados e suas famílias recompensadas de forma generosa. Os vivos, enquanto isso, teriam a tarefa de confirmar essa fábula.
Dos vilmorianos, seis mil - dois mil de cada legião - ficariam postados lá embaixo, nas planícies irregulares ao redor do conjunto de morros, sob o pretexto de impedir qualquer tentativa de fuga por parte dos elfos. De lá não veriam coisa alguma, de modo que não poderiam testemunhar contra ou a favor da versão oficial. Os outros nove mil vilmorianos marchariam para a morte junto dos quase seis mil estrangeiros. Segundo o rei de Farl, aquele era o mínimo que Erik poderia sacrificar. Um número pequeno demais deixaria os elfos desconfiados.
Tanto Derek quanto Henrik se mostravam inseguros quanto às intenções do rei anão. Para Erik o farliano parecia sincero em sua convicção de destruir Zádia. Além disso, a inimizade entre os dois povos era conhecida em todo o Norte, embora não se soubesse sua causa exata. Possivelmente o rei Bádlin tinha motivos mais relevantes que uma mera rixa entre povos para querer transformar Zádia em cinzas, mas o que quer que fosse não interessava a Erik. Com os elfos fora do caminho, não haveria em Nordgard qualquer poder capaz de fazer frente ao avanço de Vilmord. A não ser, talvez, os próprios farlianos. Mas essa era outra questão.
Quase três horas de descanso haviam se passado quando as trombetas finalmente começaram a soar. O coração de Erik acelerou. Igualmente assustados, os legionários largaram apressadamente os dados e as putas e se puseram a trabalhar. Com maior relutância se afastaram dos tonéis de hidromel e cerveja. Muitos estavam bêbados, percebeu o rei. “Que isso os impeça de sofrer.”
Canhões eram empurrados, caixas de munição e barris de pólvora eram organizados, armaduras eram melhor ajustadas e lâminas eram afiadas. Outros barris, recheados com o líquido inflamável dos farlianos, eram empilhados perto de onde as catapultas estavam sendo montadas. Já fazia bem mais de um século que catapultas não eram utilizadas nas guerras do Norte, tendo se tornado obsoletas frente ao poder dos canhões, mas para o que eles estavam prestes a realizar elas seriam mais úteis. No fim, é claro, tudo não passava de um teatro.
Mais um bom tempo se passou antes que tudo estivesse pronto. Nove mil legionários e quase seis mil recrutas estrangeiros com treinamento inacabado aguardavam à beira da encosta. Espadas, machados e lanças eram segurados com nítido nervosismo. Três mil daqueles homens pertenciam à legião de Lars, portanto haviam estado em Lundeburg. Não fosse por sua fé no poder dos síneos, jamais teriam aceitado aquela tarefa.
Dos trinta síneos, vinte desceriam com os legionários. Erik não sabia se mais alguém tinha notado, mas esses vinte eram justamente os mais estranhos. Os dois orientais e o negro de Shalkai estavam entre eles. Não haviam trocado palavra ou olhar com ninguém durante toda a viagem, nem mesmo uns com os outros. Quando não estavam ocupados cumprindo as ordens de seu líder, ficavam parados olhando fixamente para o nada. O líder, Samir, seria um dos dez que ficariam ali em cima, supostamente dando apoio mágico ao ataque. Esse grupo era composto quase inteiramente por homens morenos de Shariq ou Jinádea, sendo os únicos entre os síneos que se comportavam como pessoas comuns. Erik os flagara até mesmo olhando cobiçosamente para as putas dos legionários.
- É chegada a hora, Majestade - disse a voz aguda de Lars.
- Dê a ordem - respondeu o rei, com o coração voltando a se acelerar.
Mas o general balançou a cabeça.
- A honra é sua, Majestade.
Erik quase riu. Com aquilo Lars achava que se livrava da culpa? Respirando fundo, sentindo o gosto da bile, o rei juntou coragem para se dirigir aos homens que enviava para a morte.
- Vilmorianos! Nórdicos! Em mais de um milênio nenhum ser humano lutou em tão gloriosa batalha! Marchem sem medo! Mostrem a esses desgraçados que vocês são tão duros quanto seus acestrais! Assim como eles fizeram há mil anos, hoje vocês se banharão no sangue dos elfos!
Como acontecera na cidade, apenas os vilmorianos assentiram em aprovação.
- Vão! Matem todos! Por Hózus e Elbrus! VÃO!!!
Foram. Os vinte síneos, ou o que quer que fossem, marchavam na frente. Seria uma descida lenta pela encosta íngreme. Os canhões e as catapultas começaram a disparar. Os primeiros barris em chamas se espatifaram sobre as árvores.

Zádia, enfim, começava a arder.

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